Edição nº 1917 - 22 de outubro de 2025

Joaquim Bispo
RUTURA

A vida de Anselmo Caçapo decorria num ramerrame pontuado pela regularidade pendular das refeições domésticas, a vacuidade dos programas televisivos e a futilidade dos seus passatempos, em que avultava o sudoku.
Trabalhar e competir tinham tido o seu tempo. Agora, reformado e apaziguado dos antigos afãs, só queria sossego, algum silêncio, e desfrutar a boa-vida. Sobre o sofá onde fazia umas sestas, a frase: “Que bom é não fazer nada e depois descansar!”
Nessa manhã acordou com um auspicioso entusiasmo de glória matinal. A sua mente, seduzida pelo contentamento do físico, deixou-se invadir por um júbilo sereno. O dia que aí vinha só podia correr bem, apesar das primeiras chuvas de outono.
Pegou no caderninho com problemas de sudoku que o entretinha por horas e instalou-se ao comprido no sofá da salinha, um sorriso subtil a aflorar-lhe os lábios, ao ouvir a chuva a bater na vidraça. Esticou os pés para a frente e para trás, que estalaram agradavelmente. Ia ser uma manhã daquelas!
Enquanto alguns dos seus ex-colegas tentavam continuar a ganhar dinheiro e outros arranjavam depressões por se sentirem inúteis, Anselmo declarava que “Inútil” era o seu nome do meio e convivia bem com ele. “Quanto menos chatices, melhor!”
No fim dessa manhã teve a satisfação orgástica de terminar um problema de 16x16 que já o vinha deliciando havia três dias, como metodicamente anotara na margem do caderninho.
Depois de almoço, como a chuva parara, deu um passeio até ao parque próximo de sua casa. O tempo estava fresco e agora as nuvens, em borbotões de algodão, evoluíam no céu estranhamente luminoso. Durante um pouco, aceitou o jogo das formas para o qual estas nuvens, autónomas e bem delineadas, sempre convidavam. Uma pareceu-lhe uma ovelha, tão presente na sua infância no campo; outra, um torso feminino deitado.
Cães de apartamento frustrados, na ânsia de encontrarem almas-gémeas pelo cheiro, arrastavam cinquentonas solitárias pela trela, ao longo das estreitas e sinuosas alamedas em que já eram evidentes os despojos que o outono impõe às árvores. “Por baixo da roupa, todas vão nuas”, pensou.
Junto ao banco em que se sentara, chamou-lhe a atenção um formigueiro. Diligentes e sem hesitações, os insetos negros espalhavam no chão em volta do buraco de entrada todos os haveres que a chuva da manhã tinha ensopado - sementes, pedaços de talos, folhas e carcaças de bichinhos vários. Depois de secos, voltariam a recolhê-los.
Deu uma volta pausada pelo parque. Num recanto onde a autarquia instalara mesa e cadeiras metálicas, um magote de outros reformados rodeava quatro compenetrados jogadores de sueca, saboreando provavelmente os seus requintes de estratégia. Anselmo não se aproximou; cultivava o individualismo dos autossuficientes conterrâneos. “Formigueiros, não!”
Saboreando o sol oblíquo que alegrara a tarde, avançou para uma zona mais recôndita que confinava com uma área de mata. Ao fundo de uma álea, avistou a mancha arruivada de uma raposa, alerta, mas atrevida, em incursão em território adverso.
“Que bonita!” Há quanto tempo não estava tão próximo de uma... Seguiu-a de longe, a observar o seu deambular furtivo e elegante. Aos poucos, embrenhou-se mais e mais na mata, o entusiasmo da rutura a fazer-lhe brilhar o olhar.
Era quase noite quando Anselmo chegou a casa. A filha já estava preocupada, já tinha telefonado para os Bombeiros e para a Polícia, mas toda a aflição desapareceu com a sua desculpa:
- Quem se mete por atalhos mete-se em trabalhos!
Nessa noite dormiu de um sono só. No dia seguinte retomou o ramerrame quotidiano, com as divagações da consciência, os programas tontos da televisão, e, sobretudo, o seu sudoku.

22/10/2025
 

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