José Dias Pires
O ROUBO PERFEITO
O meu avô foi buscar-me a casa e fomos até à praça grande do Bairro dos Doze onde se realizava a cerimónia.
«Não quero ir, avô.»
«Tens de querer. Hoje começas a partir.»
Sem perceber o que queria dizer, mas por acreditar que ele sabia sempre o que fazia, aceitei a sua mão sobre o meu ombro e deixei-me levar.
Pelo caminho, pôs-me ao corrente do que eu iria observar.
«Sabes o que é um pássaro cego?»
«É um pássaro que não vê, não é?»
«Podia ser, mas não é. Um pássaro cego é um pássaro que não voa, como tu.»
«Como eu?»
«Sim, como tu, se ficares por cá. Aqui, na Cidade, serás sempre como a ave do João Cego. Repara nele, e aprende.»
«Aprendo o quê, avô?»
«Aprendes a ver.»
«A ver? Mas eu vejo bem!»
«Mas não voas. Nunca poderás ver, se não souberes voar.»
«E o cego voa?»
«Voa, claro que voa.»
«Como, se não vê?»
«Vê mais que todos nós de olhos abertos.»
E lá fomos.
Estava um sol radioso, mas o ambiente era carregado. A Filarmónica tocou o Hino da Confraria, estalaram doze foguetes e, de imediato, o presidente levantou-se para discursar. A assistência agitou bandeirolas cinzentas com riscas azuis escuras.
O meu avô segredou-me ao ouvido:
«Finge que acenas, mas não sorrias. Vê, vê tudo com a máxima atenção, Júlio. Não queiras nunca ser um dos conformados, nunca.»
Apesar daquela agitação, aparentemente exuberante, pairava no ar uma das descrições que o meu pai fizera para a infelicidade, e que só muito mais tarde compreendi: a apneia da cor ou doença do polvo, a cegueira às cores que antecede a clarividência, o espaço em que a visão se reduz a um cinzento quase branco ou quase preto. A infelicidade estava ali, tinha feito caminho, e sem contradições, avanços ou recuos. E, apesar disso, eu, o neto do meu avô, tinha conseguido manter-me invisível, para poder garantir o meu compromisso mais íntimo: aprender a ver, para poder voar e, se e quando fosse capaz, preservar a memória e a eternidade infantil.
Pausadamente, o Presidente leu a extensa lista dos novos conformados.
Terminado o relambório, a Filarmónica preparava-se para nova peça quando o João Cego entrou na praça trazendo, sobre o ombro esquerdo o seu pássaro: um rouxinol de asas cortadas, branco de tão velho.
«Quero falar!», gritou o velho, tentando aproximar-se da primeira fila.
Num sussurro reprovador, a multidão olhou para trás e eu também. Elias, o velho fantocheiro que fora contratado para animar as crianças no final da festa, disse, vencendo os sussurros, ao mesmo tempo que, ajudado pelo rosnar do seu cão Almôndega, tentava abrir uma clareira para que o João Cego se aproximasse da frente:
«Os últimos serão sempre os primeiros! Deixem falar o cego!»
O velho chegou-se á frente onde se consubstanciava o roubo perfeito. Parecia um fantasma. Contudo, nenhuma daquelas personagens era fruto da reinvenção dos fantasmas de outros. Tinham cheiro, tinham volume e tinham… falta de cor. Eram absolutamente tridimensionais e viviam comigo ou perto de mim. O velho João Cego, de mediana estatura, parecia enorme. Chegava-se à frente, roubava o lugar que era seu mas que, por vontade dos outros, não lhe pertenceria. Era ladrão de si mesmo, pela primeira e última vez!
Contaram-me que o velho João Cego era gago e que cantava que nem um rouxinol, com voz de trovão ou sussurro de nuvem, consoante os textos, e que, depois de cada concerto, filosofava, estendendo o chapéu das moedas.
Desta vez, a voz saiu-lhe clara como a água do rio que alimentava o Mar de Cá. O chapéu usou-o como batuta e leque que encaminhava as suas palavras para o palanque e para a multidão.
«Hoje digo eu a Mensagem dos Conformados.»
E filosofou:
«Quero dar-vos os meus parabéns e os meus pêsames. Parabéns aos senhores do Diretório da Confraria que, sem pena, não cumprimento nem reverencio, pois, como sabeis, não os consigo ver. Mas consigo imaginar os seus sorrisos, o seu prazer que todos os anos se repete quando, sempre a seu favor, dão asas as uns e aumentam as penas a outros, cortando-lhes as asas. Pêsames aos que aceitam deixar-se iluminar pelo cinzentismo desta cerimónia, recebendo a guia de marcha para o Formigueiro. Hoje, uma vez mais, perpetua-se a Ditadura do Tempo: sem ponteiros nem contagem, para os que mandam; com sirenes e controlo, para os que obedecem!
Hoje é o dia do Conformismo: o dia em que se celebra o esquecimento. De que vos servirá o que aprenderam nas aulas de Leitura, Escrita, Cálculo, Lógica e Expressão de Pensamento? A partir de hoje sereis conduzidos pela ilusão de que voar é a substância da vida, para muito poucos, e andar somente um complemento, para a maioria.
Agradeço aos deuses ou aos demónios terem-me cegado quando fiz dez anos. Nesse dia comecei a voar e livrei-me de ser obrigado a aprender as Competências Incompetentes, as Habilidades Inoperacionais e os Saberes Relativos.
Nunca mais pude voltar ao Bairro dos Doze e deixei de ser obrigado a frequentar a escola. Ainda bem. Passei a ver por dentro e a voar tão longe quanto os horizontes da minha imaginação, que os não tem.
Ide. Deixai que vos conduzam à compreensão de que os diferentes tipos de voo têm sempre riscos associados e que devem ser compensados pela formação compulsiva de diferentes formas de andar, de contar o tempo. De cabeça levantada e com um Olho do Tempo no pulso, os predestinados; de cabeça baixa e de ouvidos atentos à Torre do Relógio Vinte e Quatro, os conformados.
Eu só queria aprender a fazer Relógios Sem Tempo. Não podia, porque nasci para ser predestinado, e não pude, porque me cegaram os foguetes.
Vá, agitem as bandeiras, animem-se com a Filarmónica! Comece a festa que há de levar-vos ao ciclo final, ao Patamar Inferior, à Especialização.
Os meus parabéns aos que caminham em direção à predestinação — serão sempre os mesmos. Os meus pêsames para os que aceitam, sem porquês, a Formação para a Escolha Compulsiva — os conformados herdeiros do nada, da disfunção final que é o crescimento onde termina a memória e se perde a eternidade infantil!»
Ouviu-se um foguete. O velho João Cego colocou o chapéu na cabeça, pegou no rouxinol e caiu no chão.