17 julho 2013

Maria de Lurdes Gouveia Barata
DIGRESSÃO PELO CALOR…

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Há textos que nos marcam, às vezes pequenos textos que a memória recupera no âmbito de determinadas circunstâncias. A vaga de calor vinda do deserto do Sara como um longo tentáculo, cujas ventosas sufocam a respiração, trouxe-me palavras de João de Araújo Correia, palavras do Verão em Trás-os-Montes, que identifica como «sinónimo de inferno», em que «golilhas de ferro em brasa, movidas por diabinhos, algemam os pulsos».

Castelo Branco foi sempre cidade muito quente e cidade muito fria, correndo pela boca dos seus habitantes que «em Castelo Branco há apenas três estações: o Verão, o Inverno e o Caminho de Ferro». Os ditos populares transpiram (já que estamos a falar de calor…) um saber de experiência feito. Nestes infernais dias que abrasam Albicastro evita-se sair à rua ou procura-se a piscina-praia da cidade ou outras dos arredores ou alimentam-se conversas de café, com ar condicionado, sobre as altas temperaturas, os incómodos, as alergias.

Lembro que no tempo da minha infância também havia estes dias de calor quase impossível de suportar, mas sem ar condicionado, sem alergias, porque não se falava de tal… Lembro-me das férias em Monsanto, em criança e em adolescente, e a procura dos Penedos Juntos (dois monstros graníticos encostados) onde sempre corria uma brisa fresca de consolo táctil e de consolo visual perante a soberba paisagem monsantina. Se algum brincalhão levantava uma pedra, eis o problema: raramente não saía de lá um lacrau de unha espetada agressivamente pronta para uma vingança. Recordo ainda uma velhinha de olhar desbotado, com um xaile sobre a manga comprida duma blusa preta, cor que apregoava há anos a sua viuvez. Questionada sobre o calor e o fato usado, respondeu-me: «Olhe, o que tira o frio também tira o calor».

Lembro igualmente as idas, depois do jantar, ao Parque de Castelo Branco, às vezes para usufruir do cinema ao ar livre. Uma das distracções, para mim e para o meu irmão, enquanto caminhávamos, era colocar as mãos a cerca de dez centímetros de certas paredes para sentirmos o calor exalando ainda, como se fora de braseira de Inverno. Retomo a palavra de João de Araújo Correia: «Com este calor, o fígado entumece, o apetite foge, o cérebro dormita».

Este calor que leva à rejeição e que por isso a nossa vontade rejeita, invoca-se positivamente na língua, quando se fala de alma entusiástica, COM CALOR, ou negativamente quando NO CALOR da discussão se pode chegar a vias de facto.

ESTAR QUENTE pode não ser devido ao dardejar dum sol impiedoso, pode ser usufruir de influência e destaque, pode significar o estar quente da crise política. Há medidas mesmo QUENTES que não deixam o cérebro dormitar… Pode ainda acontecer ESTAR QUENTE por um pouco embriagado, nem sempre a embriaguez vindo do vinho, mas de uma certa perturbação ou loucura dos tempos em curso… ESTAR QUENTE, QUENTE é estar perto de acertar, mesmo que a resolução, por tentativas, de uma adivinha ou de uma charada não seja a melhor.

Continuando a deambular pela língua, há quem tenha AS COSTAS QUENTES, por filiação partidária dominante, escapando por vezes às garras do desemprego, essas também golilhas de ferro em brasa.

Num Portugal com tanto mar, com tantas fontes, apaziguando sedes e temperatura corporal, não deixam os portugueses de andar a gritar pela sua gota de água da esperança, como clama Florbela Espanca no soneto «Árvores do Alentejo».

QUE SECA! nos dão os governantes, sem querer responsabilizá-los pelo tempo meteorológico…
Volto ainda a João de Araújo Correia: «Toda a gente se sente morrer banhada em suor. Só os répteis, os batráquios, os insectos medram contentes. (…) A bicharada está em festa». Os humanos não. Mas talvez alguns estejam em festa também… Cada um leia com a conotação necessária…

 

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