Fernando Raposo
Daqui não saio, nem daqui ninguém me tira

Nestes dois anos que levamos de tormenta, o Presidenta da República, talvez tão impávido quanto sereno, nunca agira e agora que agiu foi muito fora de tempo.
Desde o primeiro momento, o PS mostrara-se disponível para cooperar, tendo-se mesmo abstido no primeiro orçamento apresentado pelo governo do PSD e CDS.
Talvez por “feitio”, imprudência ou ousadia, ou tudo à mistura, Passos Coelho foi subestimando tudo e todos, mandando às urtigas tudo quanto fosse ao arrepio da sua obsessão ideológica. Apesar do programa de ajustamento ter sido subscrito pelos três partidos do arco governativo, o PS fora deitado “borda fora” logo na primeira revisão do memorando. O maior partido da oposição tornava-se assim, por discricionariedade de Passos, por cegueira e subserviência da maioria e alheamento de Cavaco Silva, dispensável.
Os parceiros sociais, confederações patronais e centrais sindicais, foram também postos à margem. Passos, achava-se assim com capacidade bastante para enfrentar os desafios que tinha pela frente. Até Portas, líder do partido da coligação, se lamentara na praça pública, pela forma como fora tratado por Passos. No comunicado que fizera ao país sobre a sua demissão, Portas foi cristalino: “Porém, a forma como, reiteradamente, as decisões são tomadas no Governo torna, efectivamente, dispensável o meu contributo” ((http://publico.pt).
À medida que o dia-a-dia de cada português se torna mais difícil e mais sombrio, em consequência da obstinação de Passos, todos se tornarão dispensáveis.
Houve um tempo em que a intervenção do Presidente da República teria sido mais oportuna e prudente, e teria evitado, talvez, que o país assistisse, em plena luz do dia, à desagregação do Governo. Enquanto este tentava penosamente recompor-se, em Belém, com a “bênção” de Cavaco Silva, Portas dava com a “boca no trombone”, queixando-se das tropelias de Passos.
Passos Coelho, para sua surpresa, sofria mais um “rombo” de peso.
Um ou dois dias antes, Vitor Gaspar mandara a Passos, de quem fora mentor (segundo se diz por aí), carta de despedida e dela dera também conhecimento ao país. Gesto nunca antes visto. Pelo gesto, o país ficar-lhe-á grato para sempre.
A carta data de 1 de Julho passado e dá conta de uma outra que enviara ao mesmo destinatário oito meses antes, com o mesmo propósito: Pedido de demissão. O pedido é recorrente e na primavera deste ano, Gaspar vem novamente à carga. O ex-ministro do Estado e das finanças, reage muito mal às contrariedades.
O tribunal Constitucional barrara-lhe o caminho. O folhetim que se seguiu é já conhecido de todos, por isso dispenso-me de vo-lo repetir.
No Outono passado, o país saíra livremente à rua para contestar as alterações propostas por Gaspar à taxa social única. Portas, astuto quanto baste, gritou alto e Passos, em nome dos superiores interesses do país (entenda-se manutenção do Governo e confiança dos mercados) condescendeu. Gaspar amuou e mandou então carta de despedida.
Cavaco Silva perdeu aqui uma oportunidade de ouro para promover a unidade do país, chamando os partidos da oposição e os parceiros sociais a cooperar. Nesta altura, seria possível gerar consenso ou estabelecer compromissos, como agora se diz, em torno das reformas estruturais do país, das medidas a implementar e da metodologia a adoptar quanto ao programa de ajustamento. As consequências da trajectória política seguida até então já eram dramáticas e punham em causa todos os objectivos que o governo se propusera atingir (controle da taxa de desemprego, redução do défice e da dívida). Cavaco Silva, apesar dos alertas e apelos vindos de diferentes sectores e sensibilidades da sociedade, foi deixando que o país se arrastasse incontrolavelmente para um pântano de que não se vislumbra saída.
Adormecido, talvez pelo conforto do Palácio de Belém, o Presidente da República só agora parece ter posto “os pés na terra”, depois de “abanado” bruscamente por aquele que, ao que parece, terá sido o verdadeiro timoneiro nestes dois anos de tormenta.
Vitor Gaspar partira desolado, reconhecendo que todo o seu quadro conceptual, construído ao longo de anos nos bancos da universidade e batendo insistentemente com as pestanas nas páginas dos manuais, se desmoronara.
Tudo falhara, nada do que previra se confirmara.
Gaspar perdera toda a credibilidade junto dos portugueses, por isso não se compreende que Passos tenha colocado no seu lugar a sua mais leal e ortodoxa seguidora, Maria Luís Albuquerque.
Portas agita-se e a incerteza quanto ao futuro adensa-se. Passos, num gesto patriótico, fala ao país: - Daqui não saio, nem daqui ninguém me tira.
Depois, é o que todos já sabemos. Cavaco Silva surpreende o país e o raio dos mercados, propondo aos partidos um acordo de salvação nacional. Enquanto estes se entretêm, de ronda em ronda, numa espécie de faz de conta, o governo não tuge nem muge, o valor das acções desce, os juros sobem e o país faz de conta que anda mas não anda. Passadas três semanas tudo ficara na mesma, como era previsível. Cada partido fica dono da sua verdade, o chefe de Estado “meteu a viola no saco” e Portas lá conseguiu ir a vice-primeiro ministro e “arrebanhar” para a sua alçada, a pasta da economia. E enquanto a oitava e a nona avaliação da troika não derem à costa e o orçamento para 2014 não vir a luz do dia, os rapazes da maioria vão-se e vão-nos iludindo de que a austeridade já passou, a economia agora é sempre a crescer, etc. etc. , e os portugueses poderão agora dormir tranquilos, porque o Presidente da República vai ter o Governo “debaixo de olho”.