19 fevereiro

Maria de Lurdes Barata
AS ONDAS GIGANTES

Correm mensagens de e-mails, que as pessoas difundem pelos amigos, com o sentido de humor que caracteriza os portugueses (mesmo durante tempos difíceis). Uma, que me fez rir, traduz o gozo salutar perante as coisas sérias. Enviaram-ma com o título «Voltam as ondas gigantes. Governo aconselha vivamente», cujo conteúdo, ao lado de uma foto espectacular duma onda gigante, rezava assim: Governo alerta população ativa [transcrevo como chegou, porque eu escrevo activa] para se afastar da orla costeira. Contudo aconselha pensionistas e reformados a irem assistir, quanto mais perto melhor, à maravilha da Natureza que são as ondas gigantes.
A tragédia da comédia que emerge do aviso do e-mail atrai sobremaneira a atenção pela caricatura do contexto situacional de pensionistas e reformados que, na boca dos (des)governantes, têm sido um peso nas finanças públicas, justificando assim o ataque destrutivo às reformas e pensões para as quais os seus detentores toda a vida descontaram, e descontaram o que lhes foi exigido para poderem usufruir duma pensão que teve por base um acordo implícito. O caso é sério, mas eu ri com vontade. O velho rindo castigam-se os costumes assume pertinência no caso do referido e-mail. Disse na televisão um entrevistado que a curiosidade por este mar de ondas gigantes é mórbida…
OUTRA ONDA: A grande sala de espera da Consulta Externa está cheia, todas as cadeiras ocupadas, muitas pessoas de pé, espreitando os quadros de chamada, «agora só estão chamando os M e eu tenho um A, o A-72, estou aqui há mais de duas horas», diz uma senhora para a outra que é companheira do lado. Eu assisto (espero a vez de um familiar), lendo um livro, não dando atenção ao que leio, ouvindo conversas deste tipo, ouvindo os tics do quadro onde aparecem os números de chamada, a que se segue repetição com voz lá de dentro, pouco clara, que o sussurro das conversas impede mais de ouvir, sussurro que se torna, numa cadência progressiva, em fragor de ondas… Mas não há o cheiro revitalizante da maresia, há um cheiro húmido de fatos molhados, lá fora chove, há um cheiro do torpor que se evola dos corpos, há um cheiro a suor de pouca higiene, a respirações opressas, há as tosses cavernosas que incomodam (atrás de mim, então, uma senhora nunca mais pára essa tosse, e eu nem me volto, estas pessoas não protegem a boca com as mãos, e eu imagino o ar carregado com bactérias em movimento…). Chega a vez do meu familiar, que arrasto em direcção à porta que dá acesso aos gabinetes das consultas, mas ficamos em filas de ajuntamento de multidão, «o que se passa desta vez?», «parece que o sistema informático foi ao ar», e médicos de bata branca vêm chamar doentes, eu falo sozinha, resmungo qualquer coisa como estamos como Joseph K., a personagem de O Processo de Kafka, estamos todos numa onda que galga sobre cada um de nós, seres humanos transformados em pedrinhas deixadas pelo mar junto à praia…
As esperas em salas de espera são terríveis, mas bem piores as esperas sem sala ainda, por atrasos de exames, por demoras nas marcações (não há médicos suficientes em muitos casos), bem mais espera dolorosa porque germina a desesperança.
Há muitas ondas gigantes nestes dias do Portugal do século XXI: as do Mar-Natureza, que são belas, mas perigosas; as do mar social humano, que são perigosas, só destrutivas, nas margens definidas por uma austeridade sem controle e injusta (há muitos que se passeiam em barcos de recreio luxuosos e não lhes pedem a contribuição devida…), nas margens de gente, muita gente, que já nem acena num protesto.

19/02/2014
 

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