Cesaltina Gilo
DESEJAR E CRER
É uma aventura quando se começa a falar de uma outra pessoa. Encontrei-a vagueando pelas artérias da cidade e adoptou o nome de Maria da Saudade. Tempo passou, ajeitando-lhe o corpo de adolescente e aos dezoito anos sentiu-se dona das suas memórias.
Dessas memórias emerge a figura dum colega de ofício, a quem a imagem do mundo, familiar, escolar e social, vincou uma forte vontade de querer saber, decidindo escrever um trabalho de casa alargado: a reflexão de um professor, na obra intitulada A ti, professor, eu acuso, que se revolta contra a ignorância perante a psicologia e a pedagogia na certeza de que nem todo o docente cabe nesta acusação. É uma reflexão interior que grita «a vontade de estar contigo», numa dualidade aluno / professor.
Acontece que lhe chamam normalmente criança. Quer ser, pode até ser um qualquer João, mas de apelido tão grande como a vida, o mundo, a vontade de aprender tudo, todos… O autor é «João-concreto, de apelido eu-gosto-quero-aprender-e-ser-quero-viver-rir-pular-cantar-ler-escrever-e-contar-gostar-gostar-gostar!» de todos.
Tens complexos? Mas que culpa tenho eu dos teus complexos? Quem és tu? Resultado da velha teoria do homúnculo em que a criança era considerada um homem em miniatura? Ou a tua ufania sobrepõe-se ao dever de ser?
Continua: «Ler, escrever e contar tanto pode significar o ler-escrever-e-contar da primeira fase da escolaridade para a criança que chega à sua escola como aprender a ler, escrever e contar em qualquer outro grau escolar que se inicia (ensino secundário ou superior) ou ainda o aprender o A-B-C de toda e qualquer situação, seja isto ou aquilo, ou simplesmente viver».
Voltamos à Maria da Saudade, dona das suas memórias, inebriada pelo sonho, que era real, que a transportava para além: no início da sua juventude sentia como que um incomensurável desejo de possuir um cantinho, que fosse só seu, um quarto com duas cadeiras, uma mesa e uma estante para livros (muitos livros); sair e entrar a qualquer hora, sem que alguém interviesse nos porquês da sua vivência. Seria a liberdade.
É preciso confiar nos outros (em alguns outros) e em nós próprios, analisando os nossos erros. Acreditar no acto de ser implica assumir os nossos actos e por eles responder. Já Leibniz dizia que a acção humana é espontânea e reflectida, porque o homem, para conhecer os motivos pelos quais age no mundo, pode lidar com eles de maneira livre. Sartre afirma que «a liberdade é absoluta ou não existe». Recusa o determinismo. Recusa a existência de um Deus omnisciente e omnipotente, o que irá inverter a tese de Lutero. Outros, como Marx, protagonizam as várias liberdades parciais, que existem no capitalismo, como a liberdade económica, a liberdade de expressão ou a liberdade política.
Será a liberdade o direito de fazer tudo o que a lei não proíbe? Será o gozo dos direitos que a Constituição dum Estado livre assegura a cada cidadão? Certo que nem no tempo de Pericles a democracia foi perfeita. Países existem em que os governos assumem desvios que protelam ditaduras. «Não posso simpatizar com a classe política porque segue o interesse pessoal», opinou numa entrevista televisiva António Lobo Antunes. Acrescento de Nelson Mandela: «Nenhum homem é verdadeiramente livre, se outro não for livre». Mas é preciso desejar, crer e querer.
Liberdade de onde vens?
Fica um excerto do poema «A verdadeira liberdade» de Álvaro de Campos:
A liberdade, sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!
(…)