Antonieta Garcia
Confissão de Natal
Não há dúvida: continuo doido varrido! Desde garoto que tenho o vício de fechar as portas à realidade pura e dura; prefiro-me vagabundo de caminhos que invento, e se, às vezes, me defronto com ruelas acanhadas e tortas, noutras faço-me romeiro de avenidas com jardins e aromas de terra molhada…
Cruzo-me com personagens que me encantam com as vozes, as ideias e os segredos que confessam; mas algumas trazem-me desânimo, desconfortam-me…
Desengraço particularmente com uma misteriosa que vai construindo, como pode, descampados de alma… A depressão quase sempre de diagnóstico difícil e de cura rara, não a abandona. Quando se acerca, ocupa cantos e recantos, depenada de alegria… É de pena que se arroga o seu reino tão deste mundo. Afino bem com o coro de alívio, quando se afasta. Senhora de todas as idades levanta muros, edifica cavernas mesmo entre os bem-aventurados.
Há tempos, escapuliu-se, quando o madeiro, no adro da Igreja, aquecia muitos convivas, na noite de Consoada. Vi-a partir porque também eu marco presença, na fogueira imensa, coletiva; gosto de ver a luz a elevar-se doida de contente, as labaredas a enovelarem-se no ar, a desenharem, no chão, sombras que se movem de gente que canta ao Menino. Um deslumbramento! Andam, por aqui, memórias de pastores clássicos a desnudar a palavra, a voz a erguer-se sensível em letras e sonoridades essenciais.
Entregues magicamente à atmosfera da noite maior, que enleia o emocional e o racional, versos tradicionais espelham alegrias do nascimento, desvelam aflições e esperanças, cativam, emocionam. Explicam-nos. Criada a mãe divina à imagem e semelhança de todas as mães, embala:
Vai-te embora passarinho, / Deixa a baga do loureiro, / Deixa dormir o Menino, / Que está no sono primeiro.
Ajuda o Pai: José embala o Menino, / Que a tua mãe logo vem / Foi lavar os cueirinhos / À fontinha de Belém.
Os adoradores da luz lembram: Ó meu menino Jesus / Boquinha de requeijão / Dai-me a vossa merenda / Que a minha não tem pão.
Na festa, outros regalam o Menino com uma pomba branca, a da paz: Ó meu Menino Jesus,/ Eu Vos venho entregar / Esta linda pomba branca / Para o Menino brincar.
Do culto pagão do solstício de inverno, ficou também, o elogio do alimento ritual: Natal, natal: / Filhós com vinho / Não fazem mal. / Não fazem mal / Só fazem bem / Só as não come,/ Quem as não tem.
Dia de oferta de prendas, de gastronomia melhorada…
Lembro-me de, em miúdo, ter preparado um pedido, na noite de Consoada; peguei num papel, escrevi o que desejava, dobrei-o muitas vezes, aconcheguei-o ao coração. Depois, meti-o no sapato, à beira da chaminé… Orei a Santo António. Soltei palavras ditas e repetidas, enroladas na língua de uma oração que sabia. O Santo advogado dos perdidos sabia o meu pedido secreto. Era milagreiro… Leria a minha súplica? Confiava mesmo na maravilha de uma dádiva ou fazia de conta que acreditava?
O Pai Natal indecorosamente barrigudo, de vermelho Coca-Cola, ou do Benfica, barbas brancas, trenós, renas… também me enfeitiçou. Perdi-o cedo, pela chaminé de escolhas nebulosas, injustas que iam acontecendo a diversas crianças…
Hoje, escolhi o espaço do madeiro, onde me vejo através dos olhares que me prendem ao passado. Tresando a nostalgia e a fuga à vida. Mas bendigo o silêncio, bendigo a quietude das árvores embranquecidas pela neve. Bendigo o ar de vidro, puro, fino. Eu mais o fantasma de mim, estranho, ausente, recrio outros tempos. Continuo o mesmo doido varrido, depositário de medos, de segredos e de fé! Que dose de siso é necessária para sobreviver?
Como da merenda de todos, do vinho que anda de mão em mão…Volto a casa, já tarde; ateio a lareira. É noite de Consoada. Espero ainda o milagre, tantos anos depois, do pedido que fiz em papel dobrado que aconcheguei ao coração… As chamas na fogueira estremecem, alumiam mais. O vento sopra, há estrelas no céu…
Vejo um papel que voa, cola-se à janela, do lado de fora… Abro a porta, seguro-o, aperto-o… Reconheço-o. Trouxe-mo um refugiado figurando um anjo de sorriso gaiato… Ficou comigo; fala-me de utopia, de entusiastas da fraternidade. Calcorreou, conta-me, caminhos e atalhos, do tempo em que saboreou o leite quente de cabras e ovelhas, com pão, doce de mogango com nozes e requeijão… Ai, a mesa da infância!
Belisco-me para acreditar nesta verdade. Vale-me o vício de fechar as portas à realidade; agora, companheiros de jornada, percorremos os rumos franciscanos… Têm o tamanho do pensamento, do sonho e da crença…