Lopes Marcelo
VIVA A CANÇÃO RAIANA
Revisitando as raízes sonoras da Beira Baixa, abordo hoje uma das vertentes do património cultural menos valorizada nos nossos dias de consumismo descartável, do usar e deitar fora. Trata-se do património imaterial de tradição oral, ou seja, os saberes, os saberes-fazer, originados e consolidados na experiência de vida acumulada e transmitida ao longo de sucessivas gerações pelo exemplo, testemunhos da oralidade e na partilha dos alfabetos funcionais dos ofícios tradicionais.
Não defendo que a s tradições da nossa cultura popular sejam celebradas e conservadas como mitos intocáveis. Antes, sendo genuinamente tradições, é porque se geraram de forma autêntica e se adaptaram resistindo até aos nossos dias, como expressões coerentes da memória colectiva das comunidades rurais.
É nesta perspectiva que assinalo e saúdo os produtos culturais produzidos no âmbito da ADRACES-Associação de Desenvolvimento da Raia Centro Sul (concelhos de Penamacor, Idanha-a- Nova, Castelo Branco e Vila Velha de Ródão), valorizando o território a partir da autenticidade gerada pela Memória das suas gentes e contribuindo para salvar a canção raiana: um livro, um documentário em DVD e dois CDs de canções. Trata-se de uma viagem de redescoberta do encanto genuíno dos sons da natureza, do tocar dos sinos como expressão sonora do tempo na cultura popular, dos instrumentos e tradições musicais nas festividades e da música nos ofícios tradicionais. E é notável como a música liga as pessoas, aproxima, entrelaça, celebra e preserva a sua auto-estima e maneira de ser ao longo das gerações. De facto, cantar é seguramente o mais espontâneo dos verbos em que se conjuga a convivência humana.
Através de intenso trabalho de recolha, foram valorizadas as marcas identitárias do nosso território humanizado ao longo das gerações, passou-se da memória individual à valorização da memória colectiva pela vibração dos afectos numa relação de proximidade e de partilha, e devolveu-se à comunidade os resultados em afectuoso diálogo propiciando-se a valorização e a apropriação colectivas. Por tudo isto, voltou a ADRACES a defender os nossos recursos e potencialidades locais, valorizando a nossa Identidade. Importa, agora, que estes produtos culturais tradicionais genuínos, mas apresentados com uma gramática e estética modernas, sejam divulgados e partilhados.
Uma palavra final, mas não menos significativa, sobre o maestro condutor desta maravilhosa viagem sonora: Tom Hamilton. Músico inglês, radicado na nossa região e que de ouvidos despertos e de coração aberto, mergulhou na música tradicional dando-lhe uma roupagem moderna. E, pacien- temente, realizou um belo trabalho ao despentear as raízes sonoras: fontes que voltaram a cantar, pequenos riachos de águas cristalinas em melódicos sorrisos de espuma. Aqui fica a minha homenagem e agradecimento por ter percorrido as nossas paisagens líricas com respeito e profissionalismo, resultando uma emocionada revisitação em que se dignifica o saber genuíno da nossa gente.