Carlos Semedo
O SEXO DA ADOPÇÃO
O ainda presidente da República, Cavaco Silva, convidou-me, em 2011, para participar num almoço que reuniu personalidades, que considerou se destacarem nas suas áreas de acção, em Portugal e no estrangeiro. Foi um momento particularmente tocante, no plano pessoal, pois o mesmo aconteceu no auditório do Conservatório Regional de Castelo Branco, uma casa que tudo me deu e proporcionou e na qual estudei, me dediquei ao ensino e à difusão cultural. A imagem do presidente da República a cumprimentar-me, um pouco alheado e sem se demorar mais que um par de segundos regressa, de vez em quando, à minha memória. Infelizmente regressa amiúde porque a minha empatia, que já era pouca, se foi desvanecendo até chegar a uma incomodidade profunda. Não, não sou mal-agradecido, mas o abismo entre a sua actuação e a minha convicção foi aumentando, não me deixando tranquilo relativamente a um momento no qual me envolvi de forma intensa. Afinal, o local onde trabalho foi palco de profundas e exigentes transformações para acolher uma das cerimónias principais da comemoração do 10 de Junho, nesse ano.
Regressei à foto agora, quando Cavaco Silva vetou o diploma que permite a adopção plena por casais do mesmo sexo. As suas justificações são aceitáveis no plano da convicção pessoal; acontece que um Chefe de Estado, perante matérias tão sensíveis, deverá procurar escutar o pulsar do país e do resto do mundo e não ficar prisioneiro da sua opinião. Afirmar que não está garantida a defesa do bem-estar da criança e a centralidade do seu interesse, no caso da adopção por casais do mesmo sexo é esquecer, por exemplo, que na adopção por casais heterossexuais, acontecem, muitas vezes, reversões na situação parental, originando danos psicológicos graves nas crianças; é ignorar que não há evidência científica sobre efeitos negativos na criança, quando os adoptantes são do mesmo sexo; é não querer valorizar o facto de que, na adopção, o impulso fundamental é dos cidadãos que decidem fazer uma escolha importantíssima para a criança ou jovem e que, a partir daí, a interdependência é tendencialmente total; a qualidade dessa interdependência tem muito mais que ver com os vínculos estabelecidos e a estabilidade dos mesmos, do que com a orientação sexual do(s) adoptante(s).
Outro aspecto importante que é simplesmente ignorado pelo presidente da República, na sua contestação ao diploma, é o factor acolhimento da adopção pela família, comunidade e sociedade. Na sociedade portuguesa, as relações homossexuais são actualmente encaradas de uma forma muito mais aberta e existe um consenso alargado de que não se pode distinguir e muito menos penalizar o cidadão com base em premissas como a sua orientação sexual. Conhecendo eu a importância deste ponto na plenitude da relação pais/mães - filhas(os), creio que é redutor pensar-se no supremo interesse da criança, tendo como referente exclusivo o casal. A forma como a comunidade e a sociedade em geral acolhem a adopção é fundamental para o sucesso da família, seja ela de que tipo for. Considerar como “radical e muito profunda” a alteração preconizada no diploma, mostra um presidente nado atento ao que se passa à sua volta. Bem sei que Cavaco Silva se refere, também, ao ordenamento jurídico, só que parece esquecer que as leis devem corresponder às necessidades profundas da sociedade como um todo e não devemos temer a mudança.
A construção do amor como elemento determinante do relacionamento pais/mães - filhas(os) é uma tarefa difícil e não se esgota em potência na passagem hereditária ou de sangue. Sei, felizmente por experiência própria, que esse labor central tem muito pouco que ver com o preconceito sobre o tipo de família que o enquadra. Lamento que, aparentemente, o presidente não o saiba. E escrevo aparentemente porque há também a possibilidade de o presidente, com a sua experiência de vida, ter conhecimento de tudo isto, mas decidir como o fez apenas por opção estratégica política. Se for esse o caso, é muito mais grave. Será caso para perguntar: afinal o que é, para ele, o supremo interesse da criança.