Valter Lemos
AS NOVAS FORMAS DE CONSTRUÇÃO DA IGNORÂNCIA
Na sessão comemorativa do último aniversário do IPCB o palestrante convidado foi José Pacheco Pereira. É uma personalidade bem conhecida do comentário político integrando há longos anos o mais antigo programa televisivo de debate político – a Quadratura do Círculo. Para além disso, Pacheco Pereira é um importante investigador da história contemporânea portuguesa, possuindo o maior arquivo documental privado português e é um dos intelectuais relevantes descendente dos movimentos da década de 60 do século passado, possuindo também uma biblioteca com duzentos mil volumes.
A conferência intitulou-se “As novas formas de ser ignorante” e respeitou às relações entre o que hoje se designa por “novas tecnologias” e a sociedade, o que constitui um tema muito adequado ao tempo e ao local onde foi proferida – uma instituição de ensino superior.
Vale a pena reter algumas ideias da palestra, porque elas são marcantes para a análise da sociedade atual. A primeira respeita à evidência da importância e utilidade das novas tecnologias no mundo de hoje, mas à referência de que, só por si, nenhuma tecnologia, até hoje, mudou a sociedade. O que provocou mudanças foi o uso que a sociedade deu a essas tecnologias. Os exemplos mais significativos respeitam à máquina a vapor ou a eletricidade que se conheceram durante muitos anos sem qualquer impacto significativo e passaram a tê-lo a partir do momento em que passou a fazer-se um especifico uso social das mesmas.
A segunda ideia respeita ao uso e finalidade dos telemóveis (smartphones), que são gadgets da maior utilidade, mas, realmente, são instrumentos de comunicação ou de controle? Hoje é possível localizar um telemóvel independentemente da vontade do utilizador, mesmo sem o sistema de georreferenciação ligado. Hoje é possível ligar remotamente câmaras de vídeo acopladas ou não a computadores. Não é afinal isto uma flagrante violação da privacidade? Um adolescente português atual envia cerca de 200 sms por dia, mas o estudo dessas mensagens levou à conclusão que a esmagadora maioria respeita somente a sinais de contacto e localização – “eu estou aqui e tu onde estás”? A primeira frase na maioria dos contactos telefónicos entre namorados ou casais não é também “onde estás?” Por outro lado, a simples posse do aparelho implica que o mesmo tenha que ser usado. Quem não responder com alguma celeridade a chamadas ou mensagens sms que lhe são enviadas é frequentemente considerado mal-educado ou associal. E quantas zangas, discussões ocorrem entre familiares, namorados ou amigos porque a chamada não foi atendida ou a mensagem não foi respondida? E quantas chamadas e sms para outros familiares ou amigos porque alguém não atendeu ou não respondeu? Não é isto tudo um grande retrocesso num direito de privacidade que custou mais de uma centena de anos a conseguir nas sociedades modernas? Não se transforma afinal tudo isto num gigantesco sistema de controle?
A terceira ideia e que reputo de mais importante é que muitas vezes estas novas tecnologias e principalmente as chamadas redes sociais, são instrumentos de construção da ignorância e não do conhecimento. O Twitter pela sua natureza (só permitindo o uso de um pequeno número de carateres) induz necessariamente uma comunicação meramente gutural, onde cabem as afirmações, mas, não cabem os argumentos, as razões ou as explicações. Tal comunicação desvaloriza o saber e o conhecimento. Tanto vale uma afirmação sobre a inflação de um prémio Nobel da economia como qualquer outra afirmação de qualquer outro indivíduo que nunca estudou economia e pode até não saber o que é a inflação. Não tendo que argumentar ou explicar cria-se a ilusão que todas as opiniões são iguais. Na verdade, o que é igual, e ainda bem, é a oportunidade de expressão, mas, a natureza do instrumento acaba por conduzir à ideia de que é o conteúdo da opinião que vale o mesmo. Ou seja, o conhecimento e a ignorância têm o mesmo valor.
A realidade do facebook ou dos blogs e sítios de comunicação abertos não é muito diferente e coloca ainda mais questões e os estudos sobre os mesmos ou mesmo uma leitura atenta dos diálogos comuns mostra bem como se pode valorizar e construir a ignorância em detrimento do conhecimento. Passou a ser comum ouvir ou ler expressões, por exemplo numa discussão sobre saúde, como “o que é que importa que ele seja médico? A opinião dele vale tanto como a minha”. Passa-se o mesmo ou pior em questões sobre educação, ou economia, ou ambiente, ou tantas outras coisas. Mas, para além da confusão referida entre a igualdade de acesso à expressão e o valor ou o mérito da opinião, estas redes permitem e até incentivam a difusão da mentira, porque uma afirmação, uma vez escrita, torna-se de acesso global transformando-se rapidamente numa crença, o que dificulta ou até impossibilita que a correspondente verdade se possa afirmar. As recentes notícias sobre a escandalosa e vergonhosa manipulação das eleições americanas através dos mecanismos da internet só veio confirmar o uso global da manipulação, da mentira e do insulto que, todos os dias, cada um de nós é capaz de reconhecer em muitas das situações e interações que lhe são familiares na rede.
Estamos, pois, perante novas formas de construção e expressão da ignorância e de desvalorização do conhecimento, o que nos convoca para uma utilização mais atenta, mais cuidadosa e mais seletiva e mais responsável destes instrumentos e formas de comunicação.