18 janeiro de 2017

Maria de Lurdes Gouveia Barata
Um dia de janeiro...

Dia de Janeiro, de frio azul, dia limpo, aparentemente calmo, aparentemente porque o espaço de usufruí-lo o fez desaparecer nas portas de abrir e fechar das Urgências do Hospital. E o dia de frio azul ficou mais apetecível por imaginá-lo lá fora, sem as tosses contínuas da sala de espera, o quente do ar condicionado com peso de cansaço, da impaciência da espera, do roufenho dos altifalantes, que algumas vozes a chamar lá de dentro ainda agravam mais na disfuncionalidade, comendo parcialmente os nomes. Fica-se de cabeça inclinada, aplicando o ouvido, não vá passar a vez. Vir espreitar o céu não dá: três ambulâncias de tubo de escape activo empestam o ar à porta da Urgência.
Há uma distracção: a das caras dos que entram, dos que se lamentam das vindas necessárias, dos que falam, sendo acompanhantes dos que já estão lá dentro há muito tempo. Dentro da sala das tosses não entro. Encosto-me a uma parede a seguir à porta que abre e fecha e fico-me a olhar, taciturna e distraída, o entrar, o sair de pernas, de cadeiras de rodas, de macas com gente trazida nas ambulâncias que roncam e fumam negro. Uma criança cigana, bem agasalhada, corre alegre no meio da confusão e do sorriso dos familiares. Ai! Quase se desequilibra! Estremeço um pouco: e se caísse no chão que imagino minado de vírus e bactérias, de passeata por ali, que a ingenuidade familiar não vê? Alguém, entretanto, me aborda, conhece-me, inteira-se que estou como acompanhante… Alguém me pergunta também como funciona a máquina de café lá fora. Alguém se apressa pela convocação do nome para a triagem, alguém volta à sala das tosses para a espera doutra convocação, alguém atende o telefone e diz «ainda estou à espera». Entra outra revoada de gente e macas e ponho-me a pensar em narrativas de Kafka e a lastimar não ter levado um livro para ler encostada à parede.
O meu relógio. O relógio dos outros. Todos com olhares solidários. O sol da manhã já passou a sol da tarde e o frio azul tornou-se mais frio, até cortante na limpidez do dia. Repetem-se os passos, as pernas, as macas. Entra mais uma maca. Um homem magro, pálido, de traços angulosos, nariz pronunciado no perfil que diviso. E, de repente, em direcção à segunda porta, vê uma cara conhecida. Ergue a cabeça da maca, bate com a mão na mão do outro, abre-se num sorriso e exclama: «Vim aqui a passear!» Abanou-me o dia, não pude deixar de sorrir por fora, por dentro dei uma gargalhada. Desatei logo a simpatizar com aquele homem que me ofereceu a graça sarcástica do dia. Lembrei-me de dois versos dum poema («O sorriso») de Eugénio de Andrade: «Creio que foi o sorriso, / o sorriso foi quem abriu a porta.». «Vim aqui a passear!» abriu uma porta de libertação neste meu dia de Janeiro. Charles Chaplin chama pausa ao riso: «É saudável rir das coisas mais sinistras da vida, inclusive da morte. O riso é um tónico, um alívio, uma pausa que permite atenuar a dor». «Vim aqui a passear!»… e o meu resto de tempo de espera tornou-se uma divagação do meu sorriso que o homem que ia na maca me ofereceu.

18/01/2017
 

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