José Dias Pires
DA TRADIÇÃO ACADÉMICA À ESTUPIDEZ ESTUDANTIL
Apesar de todos os efe erre a melhor ou pior gritados nas latadas e enterros dos caloiros, da tradição académica à estupidez estudantil vai um passo.
Um passo titubeante e tropeçado dos que julgam que a tradição se acompanha com um interminável copo de cerveja e um efe erre a; um passo ondulante e vomitado que acompanha a desnecessária necessidade de uma afirmação que é feita pelas piores razões (e com a razão toldada) onde se afoga, de forma compulsiva, o prazer do convívio num desolador constrangimento de balidos sem nexo de um rebanho acéfalo que mal sabe o efe erre a.
Diz a tradição académica que as latadas e os enterros dos caloiros são momentos não formais em que a academia aceita os novos alunos e em que estes revelam estar prontos para usufruir de tudo o que ela tem para lhes oferecer.
A estupidez estudantil conseguiu, infelizmente, vencer a tradição e transformar as etapas de integração (o contacto com uma nova realidade, a compreensão de uma nova comunidade, a aceitação de uma independência pessoal responsável e o domínio compreensivo da liberdade) numa sucessão de momentos de subserviência, submissão e descontrolo que envergonham os valores e princípios do espírito académico.
A integração, enquanto percurso que leva os novos estudantes do espaço psicológico ao espaço projetivo, o mesmo é dizer ganhar a segurança suficiente para progredir, de forma integrada, do querer ser ao passar a ser, foi ultrapassada por rituais de caserna quase tribais que desaguam em desfiles de rua que não dignificam os que neles participam, desvalorizam as instituições que os permitem e envergonham (ou deviam envergonhar) quem os observa.
Estas são formas de afirmação negativa que contrariam e contaminam o que de bom ainda há na vida académica e no associativismo que lhe está associado. Por isso mesmo, as atuais latadas e enterros dos caloiros, em que aos copos de cerveja e às garrafas de vinho, bebidos sem critério, conta, peso e medida, se associam o palavrão fácil e o efe erre a, o urinar na rua e o vomitar o chão, não passam de cortejos (aparentemente alegres, mas profundamente tristes) da ilusão de liberdade e onde a boa disposição, a irreverência, o sentido crítico e o convívio se diluem.
A tradição académica não merece estes “valorosos principiantes” que ignoram os valores e os princípios da liberdade em que julgam enquadrar-se as suas manifestações coletivas, e desconhecem a sua própria história.
Conhecimento: esta é hoje uma questão sensível no que às praxes e tradições académicas diz respeito, e em que, cada vez mais, parece que “o que as coisas são” vale muito menos do que “delas se diz”.
Pergunto: «Quantos “licenciados” (marchantes salvaguardados pela licença municipal) sabem o que estão a dizer quando gritam a plenos pulmões o efe erre a?»
Imagino que dirão que isso não interessa nada. Bebem-se uns copos, dão-se uns berros e aí está a revelação: os estudantes do ensino superior, doutores do vandalismo, descarregam as suas frustrações nos caloiros, abraçam-se uns aos outros e aos caloiros, procuram, com ou sem eles, uma parede onde desaguar a bebida digerida e regressam ao desfile para gritar efe erre a.
Mas porquê efe erre a?
Será que imaginam que o efe erre a que gritam significa F.R.A. (Frente Revolucionária Académica ou Falange de Renovação Académica)? Que esse grito parece provir dos tempos conturbados da Crise Académica, inspirados, no FRA brasileiro (Frente Republicana Académica) que alguns estudantes cariocas, em finais do séc. XIX terão criado e que voltaria a fazer-se ouvir em Coimbra, pelos refugiados estudantes brasileiros, albergados na República dos Cágados?
Imagino que o ignorem, assim como quando falam em PRAXE ignorem que quer dizer PRAXIS, prática, tradição, “modo de fazer as coisas”, e que no âmbito da tradição académica o termo está ligado ao Código da Praxe de Coimbra (única Universidade aliás com uma idade que lhe permite falar de tradição), que não é mais que um código hierárquico de contornos medievais, com um cheirinho a iniciações tribais, rituais violentos de admissão a uma casta restrita (assim era antes da democratização do ensino)?
Sei que há, felizmente, quem prefira os jantares de convívio onde não é preciso aparecer de penico na cabeça ou soutien sobre a roupa e nos quais se conversa sobre a escola e o curso com alunos de todos os anos; que depois dão uma ou mais voltas pela cidade, sem estarem pintados ou bêbedos e vestidos como os alunos dos outros anos, para conhecer os cafés, as zonas mais importantes e os pontos de interesse, sem a obrigação de beber um bagaço ou um shot em cada tasca ou bar.
Os “novos tradicionalistas” perguntar-se-ão: «Mas que integração é esta? Como se “astrevem” a olhar para os mais velhos? Olhos nos olhos? Sem latir? Sem medo? Sem vergonha? Sem uma pontinha de subserviência?»
Pergunto eu: «O homem estudante (e a mulher, naturalmente) foram feitos para isto ou para aquilo? Sim, digam lá. Para que é que foi feito o Homem (e a mulher, naturalmente)?»
Os “novos tradicionalistas” responder-me-ão: «Mas nós tirámos as licenças! Isso é o regresso à censura salazarista!»
Tão grave quanto a censura do Estado Novo é a atual “Censura da Ignorância” de muitos dos que gritam efe erre a depois de terem tirado as licenças para o exercício da estupidez.
Tiraram as licenças? Pronto: estão licenciados.