OS AMANHÃS QUE CANTAM
Na releitura de excertos de “A cidade e as Serras”, de Eça de Queirós, firmei jurisprudência: entre o Jacinto de Paris e o de Tormes, hoje prefiro o cosmopolita. Sei-o enfastiado de elevadores e de modernices quejandas. Recém-chegado ao mundo rural, saboreia-lhe os prazeres pantagruélicos, frui mordomias principescas de tudo quanto é gente... Ora, que falta lhe fazia o bem-estar da cidade, sabendo Jacinto que podia voltar à urbe, a Paris, quando as moscas começassem a massacrar?
Ou seja, entre a cidade e as serras, a cidade tem mais encantos? Sim, se com intervalos campestres. (O contrário também é verdade). Mas se na aldeia o devaneio, o passeio, o envolvimento com a mãe natura, prefiguram o paraíso, só ao olho de turista se permite a fantasia de julgar que o prazer aldeão é infinito. A felicidade escolheu a ruralidade para morar? Não se iludam. O bem-estar é para os que chegam, são servidos, e partem a sonhar com os prazeres... que a brevidade da estada na aldeia proclama.
Fazendo jus ao paladar mais citadino, ajustei a ideia: qualquer habitante da cidade de Nova Iorque seria um felizardo. O encontro com o universalismo assentara arraiais nos EUA, onde a variedade de criaturas normalíssimas a par de outras estranhíssimas e de uma maioria nem-oito-nem-oitenta, criavam uma riqueza humana de bendizer os céus. Mais. Para mim, a América jamais elegeria um presidente muito diferente de Obama para a Casa Branca. Afeiçoada aos amanhãs que cantam, errei... Foi eleito (e entrou) Trump. Que se passa com americanos que elegem um presidente infantil, presunçoso, inculto, xenófobo… e o mais que se não diz por ser verdade? Que cegueiras se vislumbram? Ai que saudades que eu tenho das minhas lentes de crente nos amanhãs que cantam… A ideia de um mundo cada vez melhor, mais fraterno, mais justo, era tão saborosamente tranquilizadora!
E agora? Rompeu-se a fé na modernidade? Rompeu-se a fé na razão? Rompeu-se a fé do homem na grandeza humana? Que arte ou ciência de horror cresce em Goutha? Porquê? Para quê? Afligem os olhos atónitos daquelas crianças! Acusam-nos de violência, da fome, de esquecimento, de ausência de afeto, de pactuarmos com os senhores das armas? De que lhes vale a vida? Quem lhes devolve a alegria, a infância? Angústia, crueldade, amargura… A tecnologia todo-poderosa, não descobriu formas para servir e defender estes meninos? Quantos mais zeros à direita dos enormes proventos do setor são necessários para calar as armas? Tão lucrativas que são as armas químicas, as armas nucleares, as armas... Saúde planetária? Que interessa? Os senhores da guerra esquecem que a Terra é única e uma aldeia global. Estão loucos. Inquietações, desassossegos, cuidados … Onde está a Bem-aventurança?
O ruído ensurdecedor de notícias quilométricas sobre assuntos menores oculta o silêncio e a indiferença cúmplices que se erguem como pilares da recriação de tempos caóticos, em que vale tudo… desde que confira poder e / ou garanta fortuna.
Paira uma ameaça de desumanização a avolumar-se no horizonte. Sem pejo, ergue-se como bandeira o racismo, a supremacia branca… E nunca se divulgaram tantas agressões, tanta corrupção, tanta fraude, tanto branqueamento de capital… Que é da piedade dos eternos condenados da terra? E tudo isto contamina assustadoramente a confiança no Outro. Como se de uma maldição se tratasse, tecem-se discursos velhos, edificadores de cadeias de sofrimento, que convidam ao desânimo, à desistência. Aniquilam a pessoa.
Aprendemos que uma maior educação não assegura a Paz, a civilidade. Mas a intolerância é destruidora. Na história da Humanidade, diálogo e confronto entretecem-se de intolerâncias e fundamentalismos polícromos. Que é dos artistas, dos filósofos, dos loucos criadores que autentiquem a diferença, que defendam e reflitam sobre a humanização da Humanidade? Valem incomensuravelmente mais, números, robots, formatações. Puritanismos vários tendem a apagar a dimensão dionisíaca do ser, a confiscar-lhe o sonho. Apreender o prazer é anseio que reaparece. Como outrora, com a supressão do deleite, o pensamento ensandece, opta e exorta: “Abaixo a inteligência! Viva a morte!” foi grito franquista ouvido na Guerra Civil de Espanha.
Onde descobrir a Bem aventurança? Na “cidade”? Nas “serras”? Não sei. Mas talvez ainda habite em qualquer lado onde a demanda de viver pacificamente com o Outro se semeie. Onde cresça o respeito pelo oprimido, se erga a beleza da criação de uma cidade de todos, respeitadora do individual e do universal, a construção de um humanismo exigente capaz de tecer os valores da civilização judaico-greco-cristã.