13 de março de 2019

José Dias Pires
O NETO DA MOURA NÃO TÊM SAUDADE DA BÍBLIA PORQUE NÃO A CONHECE, APENAS A CITA

O neto da moura saiu da caverna ainda bem antes do almoço.
Foi a casa tomar banho, almoçar e aperaltar-se com o fato, a gravata e a capa das cerimónias oficiais. Sentou-se à escrivaninha para redigir a mensagem que serviria para se retratar e tentar reentrar no grupo dos Juízes Dirigentes Deformadores.
Para ser mais convincente, sobretudo para não ser traído pelas suas emoções, colocou os óculos escuros que os Deformadores usavam para esconder a bacidez dos olhos.
A reunião começou por ser muito tensa. Afinal, ele fora durante muitos anos a voz, mesmo que aparentemente louca, dos opositores.
Expôs as suas razões: Argumentou com a maturidade, o cansaço das utopias sem sentido e a saudade das reuniões preparatórias da Cerimónia do Desplumar das Inocentes Culpadas.
A saudade, que era uma palavra muito querida pelos conselheiros, ajudou a desanuviar o ambiente. O filho pródigo, sendo muito melhor orador que qualquer um deles, ao aperceber-se disso, dissertou sobre todo o tipo de saudades que lhes tocasse os corações desalmados: saudades dos rituais de extermínio das ilusões; do brilho baço do olhar dos Juízes Deformadores; do sorriso conformado dos submissos aselhas e da higienização do destino que promovia os violentos asados.
Mas os conselheiros queriam mais.
Queriam uma prova irrefutável da sua regeneração — a entrega dos conspiradores.
Defendeu-se. Disse que, sabendo de uma conspiração, pouco conhecia dos seus membros, e que apenas tinha relação com o elemento de contacto. Informou-os que ela estaria encarregue de entrar na sede, durante as primeiras horas da noite seguinte, para lá deixar uma mensagem nas paredes. Ofereceu-se para ser ele a interrogá-la.
Os conselheiros decidiram jantar nas instalações e esperar pela chegada da intrusa. E, como lhe reconheciam os seus dotes de oratória, ofereceram-lhe a possibilidade de ser ele a encerrar a Cerimónia do Desplumar das Inocentes Culpadas, dado que o Presidente estava afónico e já dissera que não o poderia fazer. Mas colocavam-lhe uma condição: conseguir extrair-lhe os nomes dos principais conspiradores.
Aceitou. Prestou juramento, assinou a ata com a caneta de marfim e ficou refastelado num dos cadeirões da luxuosa Sala das Cinzas, o espaço de leitura, conversa e bebidas do Conselho Diretor, acompanhado por um copo de vinho do porto, vintage.
Continuou o seu processo encantatório com a invenção de narrativas das personagens desprezíveis que lhes cabia julgar: que acreditavam estarem escondidos, nas masmorras da Ilha, monstros assassinos capazes de perseguir quem ousasse ter instintos sonhadores; que tinham aprendido a deixar de pensar porque sabiam que havia no gabinete do presidente um conjunto de espelhos através do qual ele conseguia observar os pensamentos de quem, na sala de espera, aguardava a sua vez de ser recebido; que baixavam os olhos sempre que um Juiz Deformador tirava os óculos escuros porque temiam cegar com o brilho do seu olhar; que evitavam respirar o bafo dos violentos asados porque, se o fizessem, tornavam-se incapazes de balbuciar as palavras querer e poder.
E assim esteve o resto da noite. Ele, o orador, os outros, os basbaques ouvintes ainda mais crédulos que os protagonistas das suas narrativas.
Deslumbrava-os com relatos intrigantes dos longos períodos da sua vida repletos de uma completa e absoluta indiferença pelos que entravam e saíam na praça grande nos dias das grandes celebrações, apenas para tentar captar uma razão, um olhar, um sorriso, uma testa franzida ou um lábio mordido que revelasse o sentido daquelas festividades.
Diminuía as criaturas cinzentas, dizendo-as incapazes de compreender um som, uma exaltação, um sofrimento. Falou das roupas que usavam, suadas, surradas, onde não transparecia uma ousadia.
Ganhava ascendência, reconhecimento, fascínio.
Alguns dos seus companheiros já o imaginavam a presidir ao Conselho Diretor e por isso sorriam, condescendentes, na antecâmara da submissão.
O neto da moura sentia-o, estremecia por dentro, temia que a personagem tomasse a alma do autor e, para não se esquecer que não passava de um ator, mentiu-lhes. Disse-lhes que assim falaria Zaratustra no dialeto da sua aldeia para anunciar que o melhor ainda estava para vir. Todos acreditaram, mas o que fez foi arriscar uma expressão no velho dialeto do Conselho Diretor que anunciava que a Ditadura do Tempo Novo estava perto do fim: E todetase tu dimbu irdé bisdu tu von.
E concluiu:
«Amanhã é o dia em que acontece a festa. O dia tão esperado por nós que tão ansiosamente o aguardamos. Amanhã é o dia da celebração do sofrimento e da passividade — a nossa alegria que nos mantém vivos, unidos, diferentes, únicos. Bater-nos-ão palmas os que estão impossibilitados de entrar na nossa festa, os que não descobrirão amanhã, depois do longo Discurso dos Minuciosos Propósitos, que serão eles quem começa a morrer por dentro, incapazes de contestar, quanto mais matar, os que ficamos, como sempre, do lado de fora da amargura. As criaturas cinzentas, que nada possuem, são os donos da rua? Deixá-los viver esse engano, pois não se darão conta que somos nós os seus donos. Deixá-los devorar as nossas insígnias com os olhos e reter os novelos de fumo dos fogos-de-artifício entre os dedos indicadores e polegares, desfrutando desse poder efémero, provisório e fugaz. Deixá-los saciar, nesse pequeno momento triunfal, a fome das suas almas que não têm espírito, apenas calamidade.
Mas nunca conseguirão entrar aqui em grupo.
Inaptos e desconhecedores, levariam mais do que um dia para compreender as nossas fechaduras e mais do que um mês para abrir as nossas portas. Engendrariam dezenas de estratagemas, centenas de projetos, milhares de tentativas, antes de o conseguirem concretizar.
Mas, atenção, existe uma força maior. Maior do que eles, maior do que nós — a força do tempo que nos ajuda a atingir os nossos propósitos, a não recuar perante as dúvidas, se as temos, quanto à natureza das nossas festividades e ao tipo de mortes que elas provocam.
Por isso repitam: O melhor ainda está para vir!
E os basbaques, elevando os copos, repetiram.
E o neto da moura sorriu, perante a ignorância dos conselheiros.
Começava a vencer, mesmo sabendo citar mal, mas em seu proveito, a bíblia dos outros.
São assim todos os netos das mouras (desencantadas).

13/03/2019
 

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