Valter Lemos
A SITUAÇÃO DA JUSTIÇA
Há vários anos que a situação da justiça em Portugal é apontada como um problema. No entanto, cada vez que a questão é referida por qualquer responsável político ou qualquer figura mediática, logo aparece um coro de vozes, das quais relevam as do sindicato dos procuradores do ministério público e diversos jornalistas e comentadores que noticiam frequentemente o conteúdo dos processos em segredo de justiça e que imediatamente associam tais discussões a uma intenção escondida de condicionar a autonomia do poder judicial.
O chamado “caso Marquês” veio criar, aliás, as condições ideais para tal argumentação ter dominância. Qualquer chamada de atenção para os problemas de funcionamento da justiça, passou imediatamente a ser enquadrada pelos comentadores do universo “Correio da Manhã”, como uma ligação a Sócrates e logo, condenada a ser uma posição criticável e inaceitável.
Com tais condicionantes tornou-se quase “politicamente proibido” referir problemas de funcionamento do ministério público ou dos tribunais, calando assim a discussão e as críticas. O que se passou aquando das declarações de Rui Rio acerca da constituição do Conselho Superior do Ministério Público é bem esclarecedor dos condicionalismos criados à análise do funcionamento do poder judicial.
Mas, apesar disso ou talvez por isso, os problemas continuaram a aparecer. A escandalosa devassa dos processos em segredo de justiça, designadamente dos que envolvem agentes políticos, continuou sempre. Com as “fugas” a serem quase sempre favoráveis às teses do ministério público e desfavoráveis às das respetivas defesas. A excruciante demora dos processos de inquérito e correspondentes julgamentos continuou a ser um calvário para os envolvidos. O aparente desfasamento de alguns juízes no respeitante às preocupações e perceções sociais, como nos casos da pedofilia, dos crimes sexuais e da violência doméstica tornou-se mais visível.
Os casos de corrupção no ministério público e na magistratura judicial vieram, naturalmente, adensar muito as preocupações com o funcionamento da justiça e aumentar a desconfiança dos cidadãos. Ainda que, diga-se em abono da verdade, mostrem ao mesmo tempo que a justiça está a funcionar, pois, até os próprios agentes não escapam à sua ação.
As recentes notícias sobre o caso dos presidentes do Tribunal da Relação de Lisboa e sobre o sorteio dos juízes são especialmente graves e preocupantes e além de aumentarem a angústia levantam a necessidade objetiva de não continuar a tentar esconder a discussão dos problemas atrás de argumentos falaciosos.
A especial gravidade dos casos advém do facto dos mesmos atingirem o centro do sistema. O presidente de um tribunal da relação não é um agente judicial qualquer. E os dois presidentes da Relação de Lisboa (o atual que já apresentou a demissão e o anterior) estão suspeitos de envolvimento em procedimentos alegadamente ilegais e de obvia gravidade, que incluem, num caso, a prática de atividade proibida e até de corrupção.
A questão da eventual viciação do sorteio de juízes vai mesmo direita ao coração da justiça. O princípio do “juiz natural” é um dos princípios fundadores da administração da justiça dos últimos duzentos anos (foi legislado pela primeira vez em 1790) e uma das mais importantes garantias de independência e imparcialidade do processo penal. A sua violação tem de ser entendida como uma questão muito grave do funcionamento da justiça e não pode deixar de ser discutida e firmemente corrigida.
É indispensável averiguar se estamos perante uma situação pontual ou perante uma prática de violação reiterada da lei, pois a ser assim, tornar-se-á urgente uma atuação mais profunda no sistema. Convém recordar que já no caso Sócrates veio a público a possível violação do princípio do juiz natural na distribuição do processo na fase de inquérito, tendo muitos, aparentemente, feito “vista grossa”.
Não estando envolvido Sócrates nestes casos espera-se que não venham as desculpas e acusações da praxe para evitar discutir os problemas do funcionamento da justiça.
A justiça é um dos pilares fundamentais da civilização e da democracia, mas, por isso mesmo, o seu funcionamento não é um problema dos juízes ou dos procuradores e ainda menos dos respetivos sindicatos. É mesmo um problema de todos e por isso tem de ser discutido da forma mais honesta e transparente que sejamos capazes e que a democracia exige.