Edição nº 1631 - 25 de março de 2020

Carlos Semedo
TEMPO E REVOLUÇÃO INTERIOR

Foi necessário chegar aos meus quase cinquenta e cinco anos, para entrar nesta floresta desconhecida, que transformou o país, a Europa e o Mundo. A metáfora da guerra já foi usada por muitos, incluindo o presidente da República, e eu, pouco experiente nestas coisas, fico na dúvida. Acredito que viver uma guerra é algo que tem na imaginação, leitura, interpretação artística ou testemunhos uma aproximação mas não mais que isso. Pergunto-me se haverá semelhanças entre estar em casa compulsivamente enquanto se aguarda bombardeamentos, quando se tenta permanecer invisível para os atiradores furtivos e o tentar evitar a propagação de um vírus, através do isolamento social.
Os soldados de agora podem ou têm de estar na rua, os hospitais cuidam dos doentes e os governos tomam decisões. As economias fazem o seu caminho, possível e necessário. As ruas transformam-se progressivamente em espaços desocupados e há quem olhe em redor assustado, quando vai rapidamente à mercearia. Ontem mesmo, vi um gato parado no meio de uma rua, durante largos minutos, coisa impossível há uma semana e meia. Neste momento de crise, regressemos à etimologia da palavra, na sua raiz grega, e lançamos a pergunta, ou melhor as perguntas. Estamos num espaço aberto, condicionado pelo temor e sem ter certezas consistentes, o que até enuncia a possibilidade da mudança. Até há muito pouco tempo, tínhamos discussões sobre modelos económicos, migrações, o efeito das alterações climáticas, a emergência do populismo. Lembram-se que há muito pouco tempo, os EUA ordenaram o assassinato de um alto quadro militar do Irão? Em termos de tempo histórico, foi ontem que na Venezuela a tensão levou milhões à rua e as interferências externas se fizeram sentir, lembrando outros tempos na América Latina. Foi também ontem que o exército Turco entrou na Síria e que o exército Russo ocupou uma parte da Ucrânia. Todas estas situações foram relegadas para segundo plano, apesar de continuarem a condicionar fortemente os territórios onde aconteceram. Esta emergência do vírus – há quem destaque o paralelismo entre os vídeos ou situações de divulgação massiva e o vírus que se propaga sem escolher geografias ou posicionamento social e económico – saltou para um primeiro plano global como qualquer outra catástrofe. A grande diferença é que não se vive no meio quase irreal da televisão e da internet. Toca-nos porque se passa nas nossas cidades e vilas, nos nossos hospitais e, em muitos casos, nas nossas famílias e círculo de amigos. Outra dimensão é a perenidade no tempo. Esta crise não nos larga há semanas e promete continuar. Ninguém sabe quando vai amenizar a sua pressão sobre o nosso quotidiano.
Dizia eu, há pouco, que este momento tem um enorme potencial para provocar a mudança e que esse pode ser um lado bom desta crise. Claro que não estou a afirmar que esta situação é boa. Procuro chamar a atenção para o facto de, por exemplo, tantas certezas, muitas vezes manipuladas por uma evidente superficialidade, ruírem sob a força deste terramoto. De repente, os professores e educadoras deixam de ocupar um espaço vital na vida dos nossos filhos e somos confrontados, enclausurados nas nossas casas, com a necessidade de trabalhar melhor a dinâmica induzida pelo contacto permanente. Mesmo ressalvando as devidas distâncias entre o ambiente escolar e familiar, há um desafio novo, até agora sentido apenas vagamente ao fim-de-semana ou em período de férias. Há muito pouco tempo, os médicos e enfermeiros, transformaram-se para uma boa parte da população, num autêntico saco de batatas no qual se podia bater com uma naturalidade ignóbil, levando a uma desvalorização simbólica, que redundou, entre outros fenómenos, em frequentes episódios de violência verbal e física. Pois agora, com dia e hora marcada, os profissionais de saúde têm direito a um concerto de palmas a partir das varandas, um pouco por toda a Europa. Não dá que pensar? A velocidade e a acumulação são matrizes das sociedades contemporâneas e têm-nos afastado de perguntas fundamentais. Porque temos cada vez menos tempo para as pessoas, incluindo os que nos são mais próximos? Porque criamos a ilusão de termos tantas certezas sobre os outros e as suas acções? Porque se tornou tão difícil ver, apesar de olharmos tanta coisa?
Este momento difícil e exigente que estamos a viver é um bom momento para pensar uma revolução. Dentro de nós.

25/03/2020
 

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