Maria de Lurdes Gouveia Barata
ABRIL 2020 EM PORTUGAL… EM CASA…
Acordo e em cada manhã começo logo a pensar no dia anterior e se estou mesmo dentro desta realidade de confinamento em casa a viver um filme de ficção científica em que desempenho papel de figurante. Mas é mesmo realidade, não é ficção! Tomo o primeiro café do dia na varanda, saudando o sol, nem que esteja por entre nuvens. Nos dias bruscos e chuvosos fico no limiar da porta da varanda, na tangente que separa o interior do exterior. E começo a esperar pelo final da manhã, em que temos a informação dos números de infectados, dos que estão nos cuidados intensivos, dos que morreram. A morte ronda o pensamento e o sentimento e um dia brusco ou de chuva intensifica uma presença lutuosa, que o minúsculo e invisível monstrozinho, esse coronavírus, introduziu nas nossas vidas.
Parou o mundo e o nosso famoso Avril au Portugal é dentro de paredes, com ruas vazias, praias desertas e olhares de medo e desconfiança do outro, possível infectado, e o outro replica igualmente – quanto mais afastados melhor. Falo do afastamento que não é só desconfiança, mas prova de amor ao próximo e à própria saúde, neste quotidiano vítima duma praga que tornou os nossos dias desassossegados e impacientes. Não reclamo (embora me irrite), porque o isolamento em casa significa protecção de todos, é solidariedade. Ainda hoje um jornal noticiava que, se não fosse o ficar em casa, seriam talvez 50000 infectados em vez dos 11000 que nos afligem. E haveria mais mortes. Por isso é a solidariedade e a ética que guiam a nossa atitude. Dos apelos do Papa Francisco ao mundo, pedindo coragem e cumprimento das recomendações da OMS, retive uma das suas frases conclusivas: «A vida mede-se pelo amor».
Debruço-me na minha varanda para a rua vazia de pessoas e entretenho-me a observar as passeatas majestosas dos gatos, há um de manchas castanhas que trepa por todo o lado e corre os quintais, há outro de pêlo branco e preto que tem domínio do território e assusta os outros. Há dois corvos (penso que são corvos e devem ser um casal) que esvoaçam por aqui. Mas o que gosto de ver é a maneira como caminham ligeiros pela rua acima, vazia, o chão é todo deles e voam à aproximação do primeiro perigo, como quando um carro passa. Depois olho para as orquídeas da minha varanda: as que têm já longos caules floridos e conto todos os dias os botões que ainda não abriram. Hoje, por exemplo, enfeitam-se de gotas da chuva que cai continuamente. Assim vou à rua… Volto para dentro e penso no que vou fazer… Há muitas coisas que me atraem a atenção, leio jornais e revistas, ou vejo televisão, notícias e mais notícias dos estragos que o coronavírus, invisível e por isso mais insidioso, provoca em Portugal e no mundo – o intervalo é com outros programas ou um filme… Tenho livros de parte, à mão, prosa ou poesia, para ler o que me apetece… E vou tratar de fotos…
Todavia, sinto outro arrepio neste Abril de 2020. O horror não vem só do coronavírus. Vem dos seres humanos, porque a maldade, por vezes inacreditável, mora neles. Choca-me o crime de assassinato do jovem de 21 anos por duas jovens de 19 e 23 anos. Espalharam o seu corpo cortado aos bocados por várias praias… O motivo: roubar-lhe 70000 Euros!
Aumentou o meu horror em relação ao assassinato de Ihor, o ucraniano de 40 anos que vinha para Portugal trabalhar numa empresa agrícola e foi travado no aeroporto de Lisboa pelas autoridades do SEF por não ter visto de trabalho. Ficou na espera de avião que o levasse de regresso ao seu país. É nebuloso o que aconteceu. É facto que num dos dias foi violentamente espancado por três inspectores do SEF, ficando de pés e mãos atadas e durante quase dez horas em agonias de morte. Outros depararam com ele e ninguém fez nada para o salvar. Os jornais relatam pormenores do horror e a falta de compaixão e a indiferença dos que nada fizeram e, assim, tornaram-se cúmplices de uma morte. Tudo isto me perturbou, me revoltou e me levou a questionar, com incredulidade, a natureza humana de certos seres que não devem considerar-se humanos. Ainda por cima os homicidas são autoridades de segurança. E ainda por cima estão em prisão preventiva domiciliária… Não comento mais…
Escrevo na noite de uma terça-feira, vou espreitar à varanda. A chuva cai lá fora, persistente, direitinha, porque não há vento. Uma noite chorosa. Um choro pela crueldade humana, um choro pelos que partiram levados pelo monstrozinho insidioso, um choro pelo Abril que não é o Abril ridente esperado, um Abril em que se perspectiva um futuro incerto, que traz a certeza em que o medo perdurará ainda, a certeza também de uma crise económica e social. Um Abril que tem o 25 de Abril, que, neste Abril de 2020, só pode ser celebrado nos corações… E ponho-me a pensar nas minhas embirrações com os anos bissextos…
Quase tenho de pedir desculpa aos que me lêem: que registo de tristezas deixei! Mas também deixo o desabrochar das flores, não só as da minha varanda, mas as de outras varandas e dos jardins e dos campos que nos dão a esperança do renascer, dos dias melhores, de acreditar que virá a bonança noutros meses de Abril. E temos outra certeza: a dos seres humanos, solidários, que seguem um caminho de amor, de que destaco neste agora todos os profissionais de saúde, a quem presto a homenagem que vem da gratidão.
Chove lá fora. Mas virão dias de sol.