Lopes Marcelo
QUASE TUDO...OU, QUASE NADA?
A espuma dos nossos dias já não é tão negra, embora com incerteza e ansiedade, vai crescendo o sentimento de esperança no futuro encarado com responsabilidade. Responsabilidade nos comportamentos e atitudes individuais e, também, responsabilidade colectiva pela tomada de consciência e capacidade de reflexão sobre os valores essênciais à vida.
Por mim, proponho-vos caros leitores a revisitação da janela que já abordei no mês passado: e que designei por Espuma poética da Quarentena.
I
Saboreia-se este tempo
em ondas de afecto, devagar,
tristemente cantado em silêncio,
na singela ambição de navegar
o arquipélago da esperança,
inseguro mar de imposta distância.
II
Numa hora
podemos estar distantes.
Por dias, isolados,
mas não esquecidos e vazios.
Não à rotina do desatino
ao vazio imposto
ausente e em desgosto,
bloqueado por medo ou destino.
A fonte é a genuína voz
fio de vida gotejante,
linguagem cantante,
fertilizando o abraço entre nós.
III
Há o tempo
de se ter tanto,
quase tudo.
Vem o vento
de ínvisivel tormento,
mostra que é quase nada.
Há outro tempo
de se ter pouco.
O que sobre
pode saber a quase tudo.
Não é em todo o tempo,
ou em vã ligeireza,
que nos terreiros da rotina
esvoaçam em subtíl beleza
as borboletas da alegria!
IV
O que vale a poesia
na nossa vida?
Se, desligados da tradição
indiferentes com a natureza
sem a humilde emoção
e, até, predadores da beleza,
dispersos na roleta da rotina
viciados no jogo da riqueza
e nos palcos da tele-importância,
na incompletude da ausência
destituídos de trancendência...
De que serve a subtíl maresia
da cumplice poesia?
De quase nada.
Ou, quase tudo
alimentando no coração
o consolador sentimento da liberdade,
sabendo-o intimamente para além da idade.
Sentindo-o no intenso momento
para além da efémera moldura do tempo.