Antonieta Garcia
DESABAFOS…
Olhe filha, não me deixam sair de casa! Dizem-me que caio… Caio lá agora! …
A minha cabeça não para. Aqui fechada… Dou voltas e voltas ao que hei de fazer… para nada. Se saísse, era diferente: via isto, aquilo, falava com esta, com aquela… Mandam em mim: não me deixam por um pé fora da porta. Para aqui fico!
Sabe o que faço? De manhãzinha venho para esta sala, com esta janela linda… Daqui vejo o mundo, o meu sol amarelo clarinho, a nascer devagarinho… À tarde é um espetáculo! São tantos os matizes do amarelo à cor de fogo! Fica tudo vermelho como aquele além, está a ver?!
E lembro-me de coisas. Do que fiz e do que não fiz e devia ter feito. Revolvo gavetas e roupas… Tanto que bordei e apliquei rendinhas…
Olhe, mas as saudades maiores vêm da casa do Rio. Nem aí posso ir. Porque caio! Mas ainda quero fazer um almoço para todos. Como antigamente. Somos menos agora. Mas enquanto estiver bom tempo e Deus nos deixar cá andar… É tão bonito ouvir a água do rio a correr e conversar, conversar, conversar…
Não sei se lhe disse: outro dia quiseram comprar-me a casa! Aquilo é um inferno de problemas… mas disse logo: Eu não vendo nada…
E já lhe contei aquela do Romeu e do pano bordado a Richelieu que está na mesa da sala de jantar? É de linho. Os lençóis das cama dos meus Pais eram de linho. Estragavam-se mais nuns lados do que noutros. Quando os cortava, para os aproveitar parecia que saíam da loja! Usava-se muito o linho… Um dia dei com um canto desconchavado, no tal pano! O bordado das flores rompeu, as folhas abriram… Quando o vi, depois que o lavei a última vez, deu-me uma vontade de chorar…
Contei ao Romeu. Ele tinha ideias! Diziam que era doido, mas não era! Às vezes, quando piorava nem segurava a saliva. Sedado com tanta droga! Pediu-me um papel. Fui buscá-lo. Pouco crente, confesso. Mas ele começou a desenhar e completou o desenho do pedaço de tecido estragado. Ficou igualzinho. Depois, foram as teias de aranha, os meus olhos picuinhas, o gosto de fazer tudo perfeito... Desde pequenita que gosto da perfeição. Já sabia: se não ficasse bem, fazia e desfazia e refazia… Aprendi a fazer logo bem. Pois, no pano, ninguém descobriu, até hoje, qual foi a emenda!
- Foste tu que fizeste isto?
- Com o teu desenho foi fácil!
- E dizem que somos doidos… Há doidos muito maiores do que nós e que julgam que têm muito juízo!
E a minha cabeça que não para! Estou sempre a pensar! Olhe o que me fizeram ao fogão! Estragaram tudo, para não poder cozinhar! Nem o forno serve… Os botões todos enrolados em fita-cola. Querem assim? Aconselham-me: Vinha uma senhora e ajudava, fazia o que eu mandava! Pois é, mas estas mãos é que sabem… E olhe, há quem venha a casa a trazer o almoço e o lanche… Há restaurantes… Umas vezes come-se! Outras é uma desgraça!
A vida é tão difícil, filha!
Não me entendem, mas em mim mando eu! Graças a Deus ainda estou bem! E desta casa, daqui… não saio!
Queriam uma senhora a dormir cá em casa… Para quê? Não quero. Até inventei uma maneira de sair da cama sozinha. A cama é alta e é custoso descer. Então, encostei um colchão que tenho, ao lado da trave, à cama, inclino-o e escorrego até chegar ao chão….
- Meu Deus: por que vivo esta vida se posso viver outras? As pessoas só falam, quando não é preciso. Já não tenho ninguém. E para que quero viver se não sou senhora de mim?
Tiram-me tudo. Escondem-me tudo! Veja lá que até a braseira mudaram. Era tão linda, a minha! Tão antiga! Esta, meia azul, só me apetece deitá-la pela janela fora! Quero a minha braseira! Vem aí o frio. Como me arranjo?
Se cá estivesse a Graça … Outro dia disse-me que vinha dormir aqui a casa! Arranjei o quarto. Não veio! Acorrentada como eu! Ela sofria tanto do coração! Esta proibição é um purgatório! Ouço-a tanta vez! Chamo-a! Mas não vem. Rumores e gritos deixam-me exausta. Só descanso e alivio, quando me perco no sono. É aí que me encontro com as sementes do bem que semeei e me enchem o coração.
- Já vão embora? Tomem um chazinho comigo…