António Nunes Farias
CARTA A UM DEUS AUSENTE
Não foi preciso chegar aos 54, quase 55 anos para perceber que, Deus é afinal, deus.
Não existe. Assumo para o efeito que sou ateu, agnóstico, enfim o que lhe queiram chamar. Mas sou. Que me lembre sempre o fui. Nunca me convenceram e eu nunca me convenci dessa mentira universal. Essa tal figura de altar que fizeram homem. Esse dogma invisível e incontestado que transformam em muleta dos desgraçados da vida e dos bem e mal-aventurados que, por consciência de cada um ou por força das circunstâncias o proclamam constantemente. Valha-me deus, agarrar-me a tamanha liamba que não segura, a queda é certamente livre. Bem sei que, em tempos idos seria, como serei hoje chamado de herege. Sorte a minha. Não pululam por aí as fogueiras da malfadada Santa Inquisição para destruir o corpo e purificar a alma. É que esse herege seria, eu. Fui batizado, aprendi a ser não crente desde que comecei a pensar pela minha cabeça. Fujo quando posso de rituais de fé. Quanto a estatuetas, La Pietá é quanto baste. Foi há uns anos, em trabalho, no Vaticano que a observei. Este eu, já se viu, é um rapaz sentimental, mas, artisticamente limitado e com um desejo imenso que o dia a seguir seja melhor que o anterior, para todos.
O fogo do inferno não me atormenta, o céu, o infinito, o purgatório, uma purga de mentiras para amedrontar os preocupados em alcançar um lugar à direita do Senhor. Um tormento para aqueles que não falham o terço, mastigam a hóstia e que depois do confessionário, absolvidos dos pecados cometem outros. É a hipocrisia do arrependimento.
A minha querida mãe Emília rezava o terço, ensinou-me o Pai Nosso, e a Avé Maria. Hoje vive num mundo que é só dela onde deus não entra. A doença de Alzheimer apanhou-a há uns anos. Já não reza, não reconhece o filho e o marido. E não reconhecerá o seu… Deus. Depende de todos e aguarda, porventura que Ele a chame.
Revolta-me. Sempre o dogma de uma “verdade” invisível, indiscutível, sem contraditório. O tal que revolta e nunca se explica, sabe-se lá porquê… é que em matéria de credo a verdade absoluta é infalível e devidamente admoestada ao rebanho do pastor.
No sermão tudo é explicável mesmo que não haja explicação. É o destino, uma espécie de deus que está em todo o lado, mas ao que parece, distraído.
A Florência, amiga, colega e a irmã que nunca tive, faleceu vítima de atropelamento numa das ruas de Castelo Branco. Era crente, praticante. Fervorosamente, uma mulher de fé. Tinha 51 anos, uma pessoa boa, atleta e mãe de família extremosa, preocupada com os pais e com os outros. No momento fatídico de nada lhe valeu o seu Deus que como a própria dizia, “sempre me ajudou a mim e aos meus…”. Foi o destino ou talvez algo mais grave, a distração desse tal deus menor. Enfim, falhas que não se perdoam. No que me toca, uma falha que jamais perdoarei. Jamais.
A ti Florência e à minha mãe Emília, vítimas como tantas outras de um deus ausente.
Castelo Branco, 17 de março de 2021