Gonçalo Salvado
A COLEÇÃO DE UMA HISTÓRICA CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA PARA CASTELO BRANCO
Quando, em 2016, incentivei Maria João Fernandes, a considerar Castelo Branco como o destino certo para a sua coleção de arte moveu-me, não apenas o amor incondicional a esta cidade ao qual estou para sempre ligado e que considero minha, mas a plena convicção de que a sua coleção iria enriquecer o património cultural e artístico da cidade, de maneira incontestável.
A coleção desta histórica crítica de arte portuguesa, não é – como muitas coleções já existentes – uma mera acumulação de obras, mais ao menos fruto de aquisições diletantes ou de escolhas meramente afetivas, ou de ofertas aleatórias, constitui-se, sim, como uma verdadeira lição de história de arte contemporânea para as gerações vindouras, solidamente alicerçada e amadurecida ao longo de todo uma vida dedicada ao estudo, interpretação e decifração daquilo que de mais genuíno se revestem as artes plásticas portuguesas da segunda metade do Século XX. Esta coleção reflete na sua essência e nas suas várias vertentes, uma visão verdadeiramente pedagógica e formativa, sendo uma depuração mais do que uma acumulação.
Temos, assim, hoje, em Castelo Branco, a oportunidade de apreciar uma das mais importantes coleções de arte da atualidade em Portugal, reflexo de mais de 40 anos da atividade crítica ímpar de Maria João Fernandes.
Um notável conjunto que representa menos de metade da totalidade da sua coleção propõe-se agora a uma cidade onde a arte tem vindo a ocupar cada vez mais espaço e que se veria extraordinariamente enriquecida com este espólio que se foi organizando em função de algumas das linhas estruturantes e fundadoras da arte contemporânea, representadas na exposição patente na Galeria Municipal da Casa Amarela. Uma delas, patente no conjunto dos artistas poetas e dos poetas artistas está na origem de então inédita exposição que comissariou, em 2013, na Fundação Gulbenkian de Paris, em que eu próprio tive a honra de colaborar e participar (Artistes-poètes, Poètes-artistes : Poésie et arts visuels du XXe siécle au Portugal, Fundação Calouste Gulbenkian - delegação em França, Paris, 2013).
A coleção de Maria João Fernandes reflecte um bem fundamentado e isento olhar crítico de várias décadas e um percurso já histórico que passou pelo seu contributo para o que é hoje o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, onde foi responsável pela organização pela exposição que inaugurou esta conhecida Fundação: Vieira da Silva e Arpad Szènes nas Coleções Portuguesas e por muitas outras que se lhe seguiram, como a primeira exposição antológica de José de Guimarães em colaboração com a Fundação Gulbenkian, e por outras exposições de dimensão internacional: a primeira Exposição internacional de Vieira da Silva na Fundação March de Madrid, que comissariou, e a mostra Tàpies nas Coleções Europeias, que igualmente comissariou.
Atenta às grandes correntes estéticas do seu tempo que pôde estudar de perto nos seus anos de Paris e nas suas muitas visitas a museus nas grandes capitais da arte da Europa e dos Estados Unidos. Maria João Fernandes integra a grande linhagem de poetas críticos como no Século XX Octávio Paz e entre nós Jorge de Sena ou António Ramos Rosa e dos críticos poetas, como Herbert Read, Jean Cassou ou Mário Dionísio em Portugal, para não citar senão alguns.
A poesia é sem dúvida a fonte primeva que subjaz à sua escrita que ao longo de anos se manifestou em centenas e centenas de páginas luminosas de crítica de arte, firmando-a como uma das mais penetrantes e descodificadoras hermeneutas da imagem artística da nossa contemporaneidade, o que aliás foi reconhecido por Eduardo Lourenço, que em 2009, por esse motivo e pela sua defesa da arquitetura Arte Nova em Portugal chegou a propô-la para o Prémio Pessoa.
É preciso dizê-lo claramente: Maria João Fernandes criou um estilo revolucionário e inconfundível que influenciou e marcou indelevelmente a História da Crítica de Arte praticada em Portugal. Um estilo marcadamente poético o seu? Por certo. Não esqueçamos que ela é, antes de mais, poeta. O exercício crítico, a abordagem interpretativa, misto de racional e intuitiva, vem depois, eivada, como não podia deixar de ser, dessa linguagem que faz parte da sua própria essência.
O grande mérito desta exposição será permitir dar forma visual e plástica, na sua dupla faceta, crítica e poética, a um pensamento que vem evoluindo há cerca de 40 anos com o sentido de uma grande reflexão sobre o imaginário da arte contemporânea alimentado pela poesia, sua original e primordial fonte. Imaginário com expressão nos diversos capítulos da belíssima mostra agora patente em Castelo Branco, outros tantos capítulos de uma obra importantíssima e dispersa que importa reunir e publicar.
Como importa definir o destino de uma coleção, testemunho de uma obra e da diversidade de correntes da arte do nosso tempo.
Castelo Branco tem hoje, uma vez mais, a oportunidade, depois da proposta que em 2016 Maria João Fernandes fez à cidade, de acolher este valiosíssimo espólio, em colaboração agora na sua nova formulação, com o Ministério da Cultura. Criando um novo espaço, ou aproveitando um espaço adequado já existente, em que as obras da sua coleção fossem a estrutura crítica, de um conjunto mais vasto, vindo das reservas do Museu do Chiado e eventualmente de outros Museus, e também das reservas existentes na cidade.
Castelo Branco ficaria a ganhar no presente e no futuro, dando forma a um pioneiro e exemplar projeto de descentralização cultural que iria colocar esta cidade no circuito das capitais da arte em Portugal e na Europa.
(poeta, um dos comissários da exposição)