Paulo Samuel
ARREDOR DO LIVRO DE MARIA DE LURDES GOUVEIA DA COSTA BARATA
Não se arrenegue o leitor por topar nesta página com mais um artigo sobre a poesia de António Salvado, poeta que há-de ficar figurado, a par de João Roiz de Castelo Branco, como um dos luminares albicastrenses que mais fundo e mais alto (e)levaram o sortilégio da Língua portuguesa na expressão lírica. Haja nisso alguma complacência, e não refrigério, como a pedia o contista e cronista duriense João de Araújo Correia (escritor com o qual não privámos mas que muitas vezes visitámos na sua obra), quando teimava em trazer à baila e ao remoer do público leitor factos dignas de registo, na escada do bem e do mal, que os seus concidadãos conheciam mas que deles pouca monta faziam. Neste caso, trata-se de louvar e nada de arreganhar. Foi publicado por estes dias um livro intitulado António Salvado – Contributo para o estudo da sua obra, de uma conhecida Doutora em Letras, Professora Jubilada do IPCB, que prossegue o seu magistério na Universidade Sénior Albicastrense, de sua graça: Maria de Lurdes Gouveia da Costa Barata. O nome decerto há-de dizer alguma coisa a quem lê este jornal, pois a distinta autora frequenta regularmente este semanário com crónicas e textos da esfera cultural e literária. Além disso, parte dos escritos que enformam o referido livro foram originariamente publicados na Gazeta do Interior, aqui deixando reminiscência, se não no pensamento pelo menos no coração de quem os leu e não tresleu. Bastas vezes, nesta arte como noutras, não importa escrever muito. Na nossa amizade hoje pura lembrança perpassa o exemplo de um querido cultor das Letras, natural de Niza mas tardiamente radicado e falecido no Porto, Manuel da Cruz Malpique, que muito escreveu (assoberbando o depósito de manuscritos da Biblioteca Pública portuense) mas cujo legado pouco perdurou na memória colectiva da Literatura portuguesa, tão-pouco frequentando o seu nome qualquer página de selecta literária, hoje dita imprópria e torpemente “manual” escolar. Por isso, se não abundam títulos de livros a sustentar a notoriedade desta autora, não significa isso que o seu pensamento, sensibilidade artística e ofício de escrever se situem num patamar de menor importância, comparado com outros que estralejam (por vezes em artifício) a sua prosa de “criadores” literários”. (Soubessem iludidos leitores o quanto essas páginas devem a coordenadores, cuidadores e revisores de texto, anónimos profissionais que nas Editoras tratam dos originais como se filhos fossem.)
Volvendo ao rego: tal qual um semeador, o que Maria de Lurdes Gouveia Barata generosamente sulcou entregando agora aos leitores é um conjunto de reflexões e estudos críticos, resultado da sua convivência com a obra poética de António Salvado, parte dos quais redigida a modo de apresentações a público, na circunstância e data da sua edição. Ali, todos os grãos de análise são diferentes entre si, mas tumescentes, igualando-se na mesma natureza: gerar uma raiz, floração e fruto no âmago do leitor, para melhor compreender o ofício poético do autor estudado, leia-se, António Salvado. Tempos houve em que o povo afluía a ouvir um poeta, popular ou de estirpe. Tal o vimos em regiões do Norte, quando essa distinta figura se corporizava, por exemplo, em Pedro Homem de Mello. Só quem não tem Pátria (inclusive, se não botar corpo adentro da “pátria pequena”, a qual bem explicitou o ensaísta natural de terras beirãs, João Bigotte Chorão, ao tratar do seu “mestre” de Língua portuguesa João de Araújo Correia), é que pode ficar indiferente ou sequer desconhecer a importância de poetas como Pedro Homem de Mello, ou Teixeira de Pascoaes, ambos veladamente apreciados por Eugénio de Andrade, por distintas mas literárias razões. O que se encontra na leitura deste volume de duas centenas de páginas é um itinerário, um peregrinar por fontes impressas, que mostra haver uma “poética do olhar” no vasto rol de livros de António Salvado, propícia a levedar a esperança e o amor para a celebração da Vida. Para quem possa andar distraído do que tem sido a maturação da palavra na sua polissemia semântica, o pulsar anímico, a oração religiosa e o eflúvio espiritual do poeta albicastrense por via da poesia (mas também noutros afazeres, de professor do Liceu a director-conservador do Museu Proença Tavares Júnior, por exemplo) em generosa dádiva aos seus semelhantes, importa ler este livro. Para que, mais tarde, como ouvimos em recente II Encontro de Investigadores da Beira, realizado em Alcains no passado dia 30 de abril, se não diga que já se esqueceu o ofício e o saber fazer de profissões de outrora, acumulando memória e tradições, ora de difícil recuperação. Possa este “contributo” de Maria de Lurdes Gouveia Barata aflorar no coração dos que reconhecem o valor da vida, a importância dos saberes, essa satisfação símile caldeada de alegria que dá a chegada das andorinhas quando voltejam a anunciar o tempo estival. Ser não é existir, tanto mais que hoje corre o verbo para qualquer coisa inanimada. Ademais, como escreve a autora do livro, “o sujeito poético é solidário com o outro” e não se “torna cativo do passado, porque não fica em êxtase de olhar perante o irrevogável. Torna-o, porém, reflexão dum agora voltado para o futuro, mesmo que este seja de interrogação e de incerteza” (p. 128). Seja então a palavra poética um dos resplendores no viático que a todos cumpre.