Edição nº 1741 - 11 de maio de 2022

Antonieta Garcia
PRIMAVERAS...

Os campos na Beira ressuscitam. Com o mês de março começam a espigar; abril, adolescente, emburrica e oferece ora frio, ora calor; com o maio, cheio de luz, ouvem-se raios e coriscos vários e, já meio maduro, fertiliza a criação de mais flores, mais cores e muita bicharada...
As manhãs começam cedo; os pardais acordam felizes e cantam, saltitam, namoram, animam o céu azul em voos de peritos. Chamam, depois, os mais dorminhocos; convidam todos para o banquete dos produtos da terra. Vivaldi andou por aqui e ensinou o canto dos arroios e outras pautas que celebram os dias primaveris. Em abril/maio renova-se a intimidade com os arroios, lava-se a montanha e os caminhos, ouvem-se o melro, o pintassilgo, o rouxinol...
Nestas aldeias, a comunhão com a terra-mãe tempera o trabalho duro com sonhos a haver. A Solidão tomou conta de muitas casas, de chãos, das quintas.... Outras (poucas) rejuvenesceram, amparo de gente que regressou com a reforma. O tempo de cumplicidades surge aqui e além, com memórias que desafiam sorrisos e contam lendas e narrativas pessoais que enchem as noites de vida. Os dias passam num ai, as personagens, que todos conhecem, encantam com pormenores os convívios de antanho.
Todos se lembravam que as hortaliças mais saborosas eram as da Quinta da Tia Maria; a fruta apetecia, sumarenta e saborosa, no chão da Ti Ana. As galinhas das vizinhas eram sempre melhores dos que as nossas. Os rebanhos pastavam pacientemente... Mal chegavam ao redil, com o leite ordenhado, faziam queijos que as mãos da Josefina, sempre muito frias, requintavam... As noites na eira e as romarias eram contadas e cantadas; apagavam quaisquer rudezas. Um halo genesíaco envolvia as aldeias serranas. Bem participavam:
- Não gosto nada daquelas nuvens além... Água, agora, não precisamos.... Lá se vai a cereja.... Estava tão viçosa, tão linda! Rai’s partam a chuva e a trovoada fora do tempo!
Abril já se apurava a branquear as flores que hão de ser os brincos das garotas bonitas; nas vozes das mulheres, o regadio fecundava os ventres reatando cumplicidades que a oliveira testemunhava:
À sombra da oliveira
Não se pode namorar.
Tem a folha pequenina
Deixa entrar o luar.
As flautas, os pífaros, os tambores e os adufes convidavam para o baile quem os inventou e ensinou.
Para as festas abrem-se as arcas onde espreita ainda o fato de noivado... E lá estão os lenços de namorados bonitos, o amor dito em deliciosos erros ortográficos: Aqui tem meu coração / E a chabe pró abrir / Num tenho mais que te dar / Nem tu mais que me pedir //. Lá vão eles, nas camisas dos rapazes em paixão, nas procissões, nas missas de domingo.... Contam coisas que só eles sabem...
Cada peça de vestuário que sai do baú, abre um sorriso e a nostalgia do “antigamente” dá uma demão de rejuvenescimento ao coração. Os olhos cheios de luz passeiam com saudades de pastores e camponeses... e os olhos pintam telas de autor, efémeras, que vemos, se soubermos ver.
E há trocas de olhos que, na Primavera, em coro, desatam cantigas que as “voltas” não se esqueceram, o adufe salta no ar e uma voz confessa, como queria Fernando Pessoa:
A abanar o fogareiro
Ela corou de calor.
Ah! quem a fará corar
De um outro calor melhor!

Diálogos proibidos que não se declaram como pecados. Bailar é afronta? A alegria da dança é desrespeito? Porquê? Salta o pé com a chinela, voa a saia na roda e na intimidade de dois, depois, dizia ele:
Beijo na testa é respeito.
Beijo na face é carinho.
Beijo no queixo é vontade
De subir mais um bocadinho.
Os namoros começavam na romaria e ali naquela aldeia da Serra da Gardunha, povoada de histórias de amor... Ai, Jesus, valha-me Deus!

11/05/2022
 

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