Antonieta Garcia
UMA SECA, DIZEM OS CACHOPOS...
Não tarda e as velhas histórias de fadas, de reis, rainhas e afins... finam-se. Nem o colinho enorme da avó ou da tia solteira cheios de um quentinho noturno inesquecível lhes vale. Na verdade, o aquecimento central levou-nos até as faúlhas da lareira, misteriosas que musicavam as palavras. A garotada aconchegada ao calor ouvia tudo.
As narrativas tradicionais repetiam-se com prazer; cada contador tinha uma versão ou um modo de tecer e cruzar episódios que prendiam a meninice até ao decreto protetor de ir para a cama. Mas, quando estava presente o tio Zé Esteves...
- Conte lá mais uma! Só uma! Conta tão bem as histórias!
Começavam então a desfilar personagens que hoje colocam questões do arco da velha. A ordem na procissão era arbitrária, mas nunca faltavam A Bela Adormecida, A Branca de Neve e os Sete Anões, A Gata Borralheira...
Vejamos: no primeiro caso, chega o cavaleiro, candidato a príncipe e o mais invejado do Reino, beija Bela, no ataúde, quando ela dormia profundamente. Desperta-a, sem que o beijo fosse consentido.… Aceite-se: a princesa abriu os olhos, gostou do cavaleiro e ali se iniciou uma história de amor que acaba com a fórmula: Casaram e foram muito felizes!!!
Na história da Branca de Neve, a madrasta manda matar a menina, repreendendo o espelho que afiançava que havia alguém mais bonita do que ela... O encarregado todo crime, tem pena e faz de conta que cumpriu a ordem. O certo é que a deixou vivinha na floresta... E foi aí que a Branca de Neve encontrou uma casa onde viviam sete (sete!) anões. Estes cachopos não gostavam de bruxas, de feiticeiras e de velhas feiíssimas.... Odiavam arrumar a casa e executar tarefas domésticas rotineiras. Eram o Sabichão, o Tímido, o Atchim, o Feliz, o Mudo, o Soneca e o Zangado, nomes que dizem defeitos e qualidades de cada um. A história de vida contada aos amigos pela ingénua e boazinha Branca de Neve, fez nascer uma imensa amizade entre todos... E nem uma maçã venenosa, nas mãos da madrasta disfarçada de bruxa, levou a princesinha desta para melhor. Salvou-se e perpetrou-se mais um: Casaram e foram muito felizes!!!
Outro exemplo? A Gata Borralheira era a menina dos olhos do pai que cedo a deixou sozinha neste mundo. Bonita, tinha um coração tão grande que nem sequer invejava a boa vida das filhas da madrasta, enquanto ela arrostava com todas as labutas. Proibidíssima de sair de casa, submissa, vivia na cozinha, junto ao borralho. Ora, um dia, decide ouvir a voz sedutora da irreverência e vai ao baile, onde o Príncipe ia procurar noiva. Uma fada amorosa com uma varinha de condão a sério, ajuda-a: apronta-lhe um vestido, calça-lhe uns sapatinhos de cristal, transforma uma abóbora num lindo coche.... Mal a Cinderela entra no Palácio, o Príncipe caiu de paixão... O tempo passou rápido e a Cinderela obrigara-se a cumprir o pacto efetuado com a fada madrinha: às doze badaladas devia abandonar o Palácio. E ela foge, foge tão apressada, que um sapatinho solta-se, fica na escadaria... No baile, dançou sempre com o Príncipe que não esquecia a menina! Mandou, então, os pregoeiros do Reino em busca da dona dos sapatos pequeninos abandonados no dia do baile. De casa em casa, a Gata Borralheira venceu, sem dificuldade, a prova! Encontrada a senhora dos pés pequeninos, houve festas no Reino, e: Casaram e foram muito felizes!!!
Ou seja: a gramática das narrativas repete-se muito. Os pais das meninas casadoiras desapareciam cedo; as madrastas (o nome lhes basta!) eram piores do que a pele das cobras, expulsavam de casa as enteadas, tentavam envenená-las, programavam tragédias indizíveis; as futuras princesas, lindas de morrer, cumpriam, até casar, um calendário de tristezas e desgraças, ditado por bruxas e afins a impedir o desfecho da história; as fadas boas tentavam desfazer maldades. Para casar com o Príncipe, um futuro Rei, eram critérios relevantes ser bela, submissa, trabalhadora. Depois, casavam, eram muito felizes, tinham muitos filhos.... e a história acabava. Uma seca, dizem os cachopos!