Edição nº 1746 - 15 de junho de 2022

Maria de Lurdes Gouveia Barata
A TROVOADA

«Hipótese de trovoada amanhã à tarde, quarta-feira» - era uma das notícias finais de um telejornal e logo pensei no evento que teria nessa quarta-feira à tarde. E também pensei de imediato vou deixar o computador desligado, não haja algum azar. Pensei ainda no poder da trovoada com aquela electricidade que se derrama sobre as nossas cabeças e a força dos raios que podem estragar aparelhos eléctricos. Começa logo pela minha desconfiança das tecnologias, mas culpo-me porque apanhei medo das trovoadas desde muito pequena. Sorrio um pouco pelo exagero (será?) de criança – não ficava amedrontada, ficava aterrorizada.
Lembro o tempo em Monsanto, de férias, ou até antes da escola primária, mais nova, e assistir ao que eu, na minha imaginação e no meu sentir, considerava como prognóstico de fim do mundo. Quando a minha avó dizia vêm aí raios e coriscos, vem grande trovoada, o nervosismo tomava conta de mim. Quem conhece Monsanto, a Nave de Pedra, de Fernando Namora, «onde a fraga se torna pesadelo», vê aquela mole de granito temível, impondo um respeito enorme como obra da Natureza. Mas aguardar uma trovoada que se anunciava era terrível e vou explicar porquê.
A casa da minha avó está privilegiadamente situada no Largo da Barreira, perto da Torre do Relógio. Da grande varanda, que lhe ocupa a frontaria, divisa-se uma paisagem maravilhosa, pela imponência de abranger largo horizonte, sem qualquer outra casa na frente, que lhe possa perturbar a visão. De lá me ensinaram onde era a Serra da Estrela, que se recortava mais grandiosa no perfil do horizonte, de lá via parte da Barragem de Idanha-a-Nova, de lá divisava à noite muito longínquas luzes que diziam assinalar Castelo Branco. Uma extensão de planície onde floresciam pequenas povoações. De lá, dessa saudosa varanda, à noite, deitada de barriga para cima a olhar o céu de Verão, eu aprendi a identificar a Via Láctea, que olhava fixamente e pouco depois desviava os olhos. Não é que tinha a sensação de que a constelação começava a descer e a aproximar-se de mim?! E começava outro receio perante o desconhecido negro cheio de luzeiros, que me diziam estarem muito, muito longe (as estrelas cadentes também participavam do meu prazer…), mas pelo sim, pelo não…
Pois dessa varanda eu assistia à aproximação da trovoada, de forma lenta, como num filme de suspense. Eu via aquela cortina sobre a planície, movendo-se a pouco e pouco, aproximando-se progressivamente de Monsanto. Via cordas de lume enlaçando-se nas nuvens negras que acompanhavam a cortina e ouvia cada vez mais alto o trovão, primeiro rolado e longe, depois mais ameaçador, até que eu desistia de olhar, quando já havia ribombo e luz a iluminar intensamente, que me parecia rosa e roxa, não sei porquê associava-a a cor de petróleo… Quando chegasse à aldeia, eu já não espreitaria mais pela porta da varanda. Todavia, já estava em curso um ritual devido a informações que me tinham passado: os raios atraíam a metais, a espelhos, a árvores. O ritual obrigava-me ao seguinte: primeiro arranjava panos e toalhas que entalava nas portas dos guarda-fatos que tinham espelhos ao alto – tapava tudo, nem os espelhos mais pequenos das paredes ou sobre os móveis escapavam. Depois, na cozinha, se havia facas à vista, enfiava-as nervosamente nas gavetas. Também acontecia o mesmo a tesouras. Depois, dizia à minha avó que tirasse do pescoço qualquer fio de ouro que estivesse a usar. Ela ria-se daquela atrapalhação (eu bem ouvia já os trovões…) – ah, filha, não é preciso tanta coisa!, mas, como eu era a neta dos seus amores, fazia tudo o que lhe pedia (daí que a minha mãe, quando eu regressava a Castelo Branco, dissesse que eu vinha de Monsanto uma malcriada). Por último, à medida que os trovões se prolongavam e os relâmpagos se sucediam (penso que eu ficava mesmo um pouco febril), voltava-me para a minha avó e dizia Madrinha (eu era afilhada dela), agora vamos para a cama com uma daquelas mantas de papa que aí tem; oh, filha, quem aguenta isso em Agosto?! E a minha avó obedecia (eu replicara: não me disse que protegiam?), metíamo-nos na cama, metade da manta de papa debaixo de nós, metade por cima, embrulhadinhas, pro-tegidas.
E começava o fragor. E eu: Madrinha, vamos rezar a Santa Bárbara, dizer aquela oração que protege – Santa Bárbara Bendita / no Céu estais descrita / com raminho de água benta / livrai-nos, Senhor, desta tormenta. // Chagas abertas / corações feridos / sangue derramado / Nosso Senhor Jesus Cristo / se meta entre nós / e nos livre do perigo. E a oração repetitiva transformava-se em ladainha interminável e eu parava quando estremecia com o ribombo da tempestade com chuva torrencial puxada a vento. Ver os clarões (a minha avó dizia por vezes: que grande clarão agora!) eu não via, porque estava de olhos bem fechados dentro da manta, cabeça coberta, transpirando na voz tremente da prece. Às vezes, a minha avó reclamava ai, filha, que eu não aguento mais aqui; ó Madrinha, mais um bocadinho.
Agora vamos à oração de Santa Bárbara. É uma lembrança que nunca mais se apagou. Quando rezava Santa Bárbara Bendita / no Céu estais descrita – descrita deduzi em adulta, porque garota entendia no Céu estais de escrita. Ora questionava cá para mim: mas porque será que a Santa Bárbara está a escrever?! Já eu era dada a leitura e a escrever as “minhas coisas”… Um outro pormenor da oração: a última parte atordoava-me muito e fazia a trovoada parecer mais horrífica: Chagas abertas / corações feridos / sangue derramado… - que terror para a imaginação! Por isso, ainda hoje a trovoada me provoca medo e ansiedade.
Fiquei um dia consolada, porque não era só eu que tinha essa espécie de medo doentio. Também Fernando Pessoa experimentava isso. Um dia, quando estava no Café Martinho da Arcada, rebentou uma trovoada, os amigos vieram à porta espreitar e, ao regressarem, nem sombra do Fernando Pessoa! Foram encontrá-lo debaixo de uma mesa. Uma meia-irmã do poeta, Henriqueta Dias, fez revelação para um investigador (Hubert D. Jennings): «Ele tinha muito medo de trovoadas: escondia-se em lugares escuros para não ver os relâmpagos e cobria a cabeça para não ouvir os trovões». Foi assim que me senti mais justificada.

15/06/2022
 

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