José Dias Pires
A PROCISSÃO DAS CABEÇAS - SÃO LUÍS DO MARANHÃO - JUNHO DE 1654
O rio de gente curvava-se para a nascente. Alaranjada pelo final do dia, via-se ao fundo da rua a silhueta das paredes brancas da igreja.
Recolhidas depois de um último cântico e reservadas para as derradeiras orações, as línguas resguardavam-se na vontade de enganar olhos e ouvidos, mas eram incapazes de anular os pensamentos.
Descia-se lentamente para a igreja. O Governador, o Ouvidor Geral, o Ouvidor da Capitania, o Capitão-mor, o Secretário do Governo, o Mestre de Campo, algumas das eminências Eclesiásticas e dois Oficiais das Câmaras fazendo a guarda de honra ao Pálio, tal como o Padre António, tinham, naquela descida, uma perspetiva completa de toda a procissão. Alongado, aquele rio de gente bem podia ser comparado a um mar de cabeças ondulando para a foz.
É um mar de pensamentos, cogitou António. É um mar de cabeças, pensou o Governador. É uma procissão de cabeças, considerou uma das Eminências Eclesiásticas. Pensou-o e disse-o, em voz suficientemente alta, para que toda a guarda de honra tomasse nota.
Rapidamente, aquelas palavras transformaram-se numa corrente dentro da corrente. Como um cardume de surubins, venceram, num ápice, as águas e chegaram à cabeça da procissão: Procissão de cabeças, procissão de cabeças, procissão de cabeças.
Cada um, não importava a condição ou a devoção, imaginou, na cabeça do vizinho, as qualidades que não podia descortinar na sua, os defeitos que desejava ignorar ou apenas desejos e omissões.
Pensar sem existir.
A tormentosa corrente de palavras entrava, sem pedir licença, na cabeça de António. Incapaz de transformar a trovoada em silêncio, sentiu uma vertigem que disfarçou com um sorriso.
Os pensamentos insistiam em invadi-lo. Chocavam entre si, digladiando-se pela primazia e afirmação.
A meio do cortejo o negro Tamúi via claramente no vizinho da frente a representação da cabeça de um touro, afirmativa, pesada, insolente.
Ha’wero, um tupi liberto, não tinha dúvidas: a criança que saltitava dando a mão à mãe tinha a cabeça de um potro, alegre, desejosa, livre. Inácio, vendedor de aves, olhando para a frente da fila, sobre os ombros desalinhados e pescoços desengonçados de gordas donas, descortinava cabeças de batuíras e garças, depenicando as orelhas de maçaricos e gaviões sob o olhar recriminador de corujas e urubus.
Luzia do Mingau, caminhando perto de uma lanterna, conseguiu ver refletida na janela a cabeça de um polvo com tentáculos cristalizados. Temendo rever-se, fechou os olhos e tropeçou em Joana Forra fixada na cabeça de Lionel da Cruz, o «nontenhada», como se de um sátiro mágico se tratasse.
Mais para a retaguarda, projetando nos ombros fronteiros as respetivas cabeças, o Ouvidor Geral vira claramente a cabeça de Governador, o Ouvidor da Capitania a de Ouvidor Geral, o Capitão-mor a de General, o Secretário do Governo a de Chanceler.
Algumas das Eminências, mais recatadas, desejaram apenas ver as cabeças dos seus Santos.
Dona Joana Paula não desistiu enquanto não viu a cabeça de Clitemnestra.
A velha Eugénia, entretanto entrada na procissão, via, em cada homem, a cabeça de Santo António emoldurada em talha dourada.
Até o velho Cónego Moreira, apesar das cataratas, conseguiu imaginar uma cabeça de luz sobre uma pedra, talvez a sua.
Todas as visões transportavam consigo pensamentos palpáveis. Açoites, peias e troncos, baixelas de prata, cristais lapidados, bofetes de talha, credências douradas, reposteiros de gorgorão, lampadários forjados, jarras da Índia, baús de moscóvia, danças de tunda, seios, nádegas e sexos de umas e de outros.
A procissão das cabeças transformava-se na procissão de todos os desesperos e de todos os desejos. Antes de chegar ao seu destino, aquele rio barrento inundava as margens interiores de António e nele se afogavam as filhas dos filhos dos patrões de suas mães; empregadas que não podiam negar a vontade dos patrões; amas-de-leite e de outros deleites, trocando todos os favores pela alforria; mães pretas, que contavam histórias fascinantes aos minino branco, futuros semeadores dos ventres das escravas; meninos ricos fingindo-se vampiros inocentes para se alimentarem da seiva branca que sangrava do peito dolorido das escravas de luto.
Tudo menos peixes.
Enrodilhados, os pensamentos, as imagens e os sons transformavam-se num pântano e até António quase caía na tentação de se imaginar como pescoço de um cavalo sufocado, a cabeça de um homem barbado, olhos semicerrados e quase nu, carregando a cruz.
Surgiu, no final de uma oração, um coletivo Ámen. E descansou. Que assim seja, pensou.
Apesar de tudo, aquelas cabeças eram vivas e queriam ser olhadas, admiradas. Rogavam por um olhar; suplicavam mudas por elogios, mas temiam. Por isso ninguém ousou olhar para trás para se ver.
A procissão caminhava para o fim. Naquele momento António sentia-se incapaz de uma palavra. Estupefacto, assustado, sabia que tais cabeças não tinham a inocência que pareciam. Nenhuma, nem mesmo a sua.
Breve trecho do romance a sair muito brevemente: CONTRADITÓRIO DOS PEIXES - A Primeira Morte de António Vieira