Maria de Lurdes Gouveia Barata
ABALOS
Imagens de correria em pânico, com tudo à volta a parecer gelatina que se abana, com interrogações como se era sonho porque estava a dormir e acordei, o fragor do que desaba e o barulho, aquilo faz barulho, que era decerto o ronco que vinha do interior da terra. São testemunhos de Marraquexe, nunca esqueceremos, deixando traumas que não vão desaparecer tão cedo. O medo de novas réplicas (de que se desconhece a intensidade) empurra para passar a noite ao ar livre, em jardins ou em espaços largos, como um campo de futebol. Eis exemplo do ser humano à mercê da Natureza, como tem acontecido com os das zonas agredidas por vulcões, tufões e ventos fortes e chuvas torrenciais, olhando as casas e outros bens a ser arrastados pelas ruas que são rios tumultuosos. Ficar resignado, e até um pouco contente, passa por ter o corpo ileso, tão somente por estar vivo, a força do instinto de sobrevivência incentiva a capacidade de luta e faz depois emergir a esperança.
A Natureza é poderosa e dominadora. Costuma dizer-se que o homem nada pode contra a Natureza, mas não é totalmente verdade. O ser humano é antes a ameaça e a destruição da Natureza pela poluição, pela afronta à floresta, que arrasta o desequilíbrio da biodiversidade e extinção de comunidades indígenas e de animais – fala-se hoje em espécies já desaparecidas e de outras em iminência de extinção. Parece que o homem não se dá conta duma missão que tem a seu cargo: a cumplicidade com a Natureza, cuidando dela e defendendo-a como casa sua com jardim. Em vez de cumprir a sua missão, o habitante do planeta Terra revela um comportamento de inconsciência, tolice mesmo, nada respeitando. E a Natureza vinga-se e entra em fúria e o homem nada pode fazer a não ser suportar as consequências do seu contributo para as alterações climáticas. Há aqueles que dizem (se calhar, diziam…) que tufões, tempestades, cheias, sempre existiram. Sabemos disso. Só se esquecem de acrescentar que mudou o aparecimento desses fenómenos em frequência e intensidade violenta, que provocam mortes e perdas irreparáveis. No caso do sismo de Marrocos, ou de outros sismos, manifesta-se, sem culpa humana, com a força incomensurável que tem.
Comecei por falar nesse abalo de Marrocos e nas mortes que continuam a aumentar, assim como o número de feridos. Todavia há outro tipo de abalos, que a metáfora linguística marca, que é o abalo psicológico. É a perspectiva a nível das emoções desencadeadas por notícia ou vivência de surpresa, ou de susto, ou de comoção de perdas. Pode dizer-se que o abalo de Marrocos trouxe consigo o abalo da surpresa, do pânico, da perda vividos como consequência. Nós, espectadores, sentimos também um abalo, o estremecimento perante as imagens e os testemunhos ouvidos, um sentimento solidário que nos projecta à hipótese de podermos viver o mesmo, sentindo-nos náufragos depois de navegantes num mar tempestuoso.
Também há abalo, quando alguém, sem olhar a meios para atingir fins, utiliza notícias falsas, insinuações malévolas, fabricadas pela inveja ou por interesses de ganhos próprios. É um grande abalo para a vítima, é um grande abalo que vai agitar a opinião pública, que, infelizmente e frequentemente, quer acreditar em algo de mau, sem esperar esclarecimento, apenas por prazer sádico. Já os textos judaicos registam: «o caluniador arruína três pessoas: a si próprio, o ouvinte e o caluniado». O Padre António Vieira escreve numa das suas Cartas: «não há inocência que esteja segura de um falso testemunho». Foi Voltaire que disse que «os caluniadores são como o fogo que enegrece a madeira verde, não podendo queimá-la». Porém enegrece e provoca um abalo na vida do caluniado e as consequências desse abalo podem ir além do enegrecimento dum nome.
Não resisto a uma transcrição de Edgar Morin (in Os Meus Demónios): «A crueldade entre homens, indivíduos, grupos, etnias, religiões, raças é aterradora. O ser humano contém em si um ruído de monstros que liberta em todas as ocasiões favoráveis. O ódio desencadeia-se por um pequeno nada, por um esquecimento, pela sorte de outrem, por um favor que se julga perdido. O ódio abstracto por uma ideia ou uma religião transforma-se em ódio concreto por um indivíduo ou um grupo; o ódio demente desencadeia-se por um erro de percepção ou de interpretação. O egoísmo, o desprezo, a indiferença, a desatenção agravam por todo o lado e sem tréguas a crueldade do mundo humano. (…) Por saturação, o excesso de crueldade alimenta a indiferença e a desatenção (…)».
Os abalos podem ser equivalentes a terramotos e tremores da alma, perante a crueldade, a injustiça e a indiferença. E os homens choram, como diz António Gedeão em «Gota de Água» (Movimento Perpétuo, 1956):
Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu.