José Dias Pires
O PARADIGMA DA INCONSEQUÊNCIA
Tudo começou no tempo dos dinossauros.
Naquele tempo, os homens, por vezes, sorriam com os olhos, ainda não falavam pelos cotovelos, mas, quase sempre, como hoje, metiam os pés pelas mãos.
Bastava vê-los: acordavam cedo, animavam-se com um empurrão, viam com o coração e caminhavam a medo porque dos pés à cabeça estavam com falta de imaginação.
Por vezes, o medo tinha cheiro a felicidade, sabor a saudade, tinha um toque de ternura, que era o que mais se parecia com o amor, naquela altura. Mas de sorrisos, nada.
Os gatos, que naquele tempo ainda não havia, eram substituídos, tal como hoje, pelos desacatos, uma espécie de dinossáurios mais pacatos que eram os seus animais de companhia. E sorrisos? Não havia.
Até que um dia, numa certa madrugada inesperada, o homem inventou a expressão tão desejada: adormecera, temeroso, sem vontade de dormir, numa muito escura noite de verão. A meio da noite acordou, vaidoso, com um pirilampo na mão. Com a noite a brilhar por causa daquele ponto de luminoso, sentiu-se vaidoso, sentiu-se diferente. E, de repente, sentiu-se tão bem! Estava a sorrir.
Mais tarde, aprendeu a falar e descobriu que quando as palavras andam perdidas e ficam a pairar no ar, o sono não as aconchega se não tiver cores para as explicar.
O sonho talvez o explique, quem sabe, se conseguir evitar o ruído que sempre têm os momentos bem guardados no dia que os produziu, à espera de explicação. Só que a preto e branco não.
Certa noite, ouviu-se um tiro! Ou será que foi uma explosão?
Uma folha de papel caiu no chão. Mas, afinal, era apenas o barulho de um trovão. O vento, que lhe faz sempre companhia, agitou a folha. Dobrou-a, redobrou-a e deu-lhe forma de ave sem reparar que não estava vazia.
Por entre as dobras, podiam ser lidas algumas palavras que até parecia terem sido de propósito escolhidas: pássaro, voo, manhã, nuvem, sorriso, romã, azul, partida, vontade, destino, sul, caminho, liberdade, medo, tempo, noite, vento, amor, amar, amigo, mar, tempestade, perigo, paira, bater, asas, voar.
Mas eram apenas palavras para serem esquecidas ou para serem escondidas depois de se descer até ao fundo-fundo que é o fundo do mar.
Quem quer saber como é o fundo mar, não pode ficar na superfície a boiar, tem mesmo de mergulhar e, em muito mais de um segundo, chegar bem ao fundo-fundo. Quem gosta que um bom debate se não transforme num disparate ou numa grande discussão, deve ir sempre ao fundo-fundo da questão, só que hoje, infelizmente nem lá chega quem, apesar de carrancudo, é uma alma boa e passa a a querer mostrar que, no fundo-fundo, é mesmo boa pessoa.
É este o paradigma da inconsequência: julgar que se chega a todo o lado e não conseguir chegar a lado nenhum, mesmo sabendo que o outro-lado-do-outro-lado fica onde cada um de nós quiser, isto é: pode ficar num muito estranho lugar onde só quem lá chega pode contar as pedras que rolam na frente das ondas do mar; contar as nuvens por onde o sol teima em espreitar; contar pelos dedos, se ainda não aprendeu a contar; contar uma história, se houver alguém que a queira escutar.
Mas o outro-lado-do-outro-lado também pode ser um lugar onde podemos ficar a saber que o melhor do inverno é preparar a primavera; que quem sabe fazer nunca se desculpa com o “quem me dera”; que as abelhas para além do mel também fabricam cera e que parte mais contente quem soube ficar à espera.
Só que hoje poucos sabem ficar à espera e urgem na descoberta de saber a que sabe a Lua., que afinal sabe a paciência e a ausência. À paciência de quem espera que a Lua Nova chegue a Lua Cheia e à ausência do queijo que não há e do pão que falta, quando chega a ceia.
Assim o paradigma da inconsequência: sabe exatamente como o nada-nada. Sabe a quase tudo que não sabe a nada, como a face oculta da Lua e o buraco dentro de um queijo, que é um espaço onde o próprio queijo ficou mais fraco. Sabe a nada-queijo, que o mesmo é dizer: sabe apenas a buraco.
Vivemos acossados pelos defensores do paradigma da inconsequência: aqueles que pensam que o pior está sempre para acontecer, mesmo nas coisas mais pequeninas, e têm, por causa disso, um enorme pavor a esquinas. Porque o seguro morreu de velho, trazem, sempre, consigo uma lanterna e um espelho. Dizem que é para espreitar o outro lado das esquinas, antes de virar, e iluminar as sombras que por lá possam estar.
Um dia destes, ao sair de casa, logo de manhã, tropeçarão numa pedra e … pum catrapum, pam… cairão (na realidade): o espelho vai partir-se e a lanterna vai fundir-se.
Só que as sombras da esquina não se somem. Continuarão à espera e, desta vez, muito confiantes… Pudera!