Guilherme D'Oliveira Martins
MIA COUTO, BIBLIOTECANDO EM TOMAR
“Bibliotecando em Tomar” é uma iniciativa única que realizou a sua 15ª edição. É o resultado da vontade de um município e de uma comunidade que põem de pé todos os anos uma grande homenagem à leitura. Lembramo-nos do diálogo épico entre José-Augusto França e Eduardo Lourenço, que ficou na nossa memória como momento grande de uma cultura viva. Este ano, Mia Couto foi a personalidade eleita. Foi, de novo, um momento excecional, graças à presença de um dos grandes escritores contemporâneos da língua portuguesa. Estudantes, professores, famílias, público em geral, todos usufruíram da generosidade e do talento do escritor moçambicano, que se dispôs a dialogar com quantos tornam o “Bibliotecando” a ilustração viva do prazer do livro e da leitura. Mia Couto tem entusiasmo pelas coisas novas, praticando o bom método de “rasgar horizontes”. O uso sábio das palavras permite-nos compreender melhor a substância da vida. “Velho, não / Entardecido, talvez / Amigo, sim. / Me tornei antigo / porque a vida, / tantas vezes se demorou. / E eu a esperei como um rio aguarda a cheia”. De facto, que é o andar do tempo senão a compreensão de que só entendemos as raízes, se percebemos o que a elas nos liga? E é esta relação com as raízes que Mia Couto nos transmite. Ao ver as palavras do avesso podemos perceber melhor o que elas representam. “Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho” Ah, como é difícil a relação com o sonho. Terra Sonâmbula (1992) tem como pano de fundo os tempos da guerra em Moçambique, da qual se traça o quadro de um realismo forte e brutal. Dentro deste cenário de pesadelo movimentam-se personagens de uma profunda humanidade, por vezes com uma dimensão mágica e mítica, todos vagueando pela terra destroçada, entre o desespero mais pungente e uma esperança que se recusa a morrer. Mia Couto tratou do tema da Terra Sonâmbula de um modo admirável e a crítica literária considera esta como uma das melhores obras literárias nos últimos anos escritas em língua portuguesa e um dos melhores livros africanos do século XX.
Já em O Mapeador de Ausências (2020), há um poeta “que vem à procura da sua infância” e que “vai começar a perceber que aquilo que é presente para ele no sentido temporal, nasce da ausência de alguém”. Vivemos e depois deixamos o nosso espaço e tempo. Essa ausência mais não representa do que uma comunidade de vida. E Mia recorda o pai, o jornalista e poeta Fernando Leite Couto, entre os ausentes que permanecem vivos. Estamos perante um “escritor da terra”, que escreve e descreve as próprias raízes do mundo, explorando a natureza humana na relação íntima e umbilical com a terra. As palavras inventadas, “estórias abensonhadas”, como que adivinham a secreta natureza do que referem, como se nenhuma outra pudesse ter sido utilizada no seu lugar. As imagens evocam a intuição de mundos fantásticos e em certa medida surrealistas, subjacentes ao mundo em que se vive, que envolve a ambiência terna e pacífica dos sonhos. O encontro com João Guimarães Rosa foi, assim, uma aproximação natural e necessária, porque, lembrando Riobaldo e Diadorim, “sertão é dentro da gente”, e “Deus existe mesmo quando não há e o demónio não precisa de existir para haver”.