Maria de Lurdes Gouveia Barata
UM INTERVALO DE MAR
Fui ao mar, apenas três dias (hei-de ir outra vez mais tempo, já marcado) e, logo que cheguei, pus-me a absorvê-lo com o olhar e com o olfacto, porque senti-lo pelo tacto ficaria para mais tarde. Estava à espera da brisa marítima, mas isso não havia! Sair de Castelo Branco e ir até ao Atlântico, mais precisamente em Buarcos, não me aliviava, sem a brisa, em relação ao calor escaldante de que fugira. Instalada, prolonguei o meu abraço do encontro num olhar mergulhado no azul profundo e nas franjas brancas das ondas que batiam nas rochas. Na verdade, o mar sempre me apazigua e me concede momentos de beleza e reflexão. É a maior massa da Terra e entranha-se em nós como viventes deste planeta.
Vem-me logo à lembrança o que é usual ouvir dizer-se de Miguel Torga: é homem de montanha que ama alturas perto do céu, não é homem de mar. Completamente falso! Já o tenho dito frequentemente, como estudiosa torguiana que sou. Vou prová-lo mais uma vez. Dizia eu a companheiros de passeio à beira-mar neste intervalo que fiz: «disse Torga perante esta beleza colossal: que grande túmulo para um poeta!» Acrescento, assim, um intervalo de poesia neste intervalo de mar. Começo por um poema homónimo de Torga (Diário XI, 7 de Agosto de 1968):
MAR
Mar!
E é um aberto poema que ressoa
No búzio do areal…
Ah, quem pudesse ouvi-lo sem mais versos!
Assim puro,
Assim azul,
Assim salgado…
Milagre horizontal
Universal,
Numa palavra só realizado.
O Mar é por si só um poema superior a qualquer outro que se exprime com versos – torna-se milagre universal ligado a beleza, a pureza e a sal, elemento que, por sua vez, preserva os alimentos, protege, torna-se estabilidade; realça o sabor; nas mais diversas culturas torna-se presente em rituais de protecção e purificação. A «Ode ao Mar» do mesmo poeta imprime bem uma ideia que abrange a própria vida, de que faço excerto dos dois primeiros versos: «Água, sal e vontade – a vida! / Azul – a cor do céu e da inocência». Acrescento ainda duas anotações do Diário torguiano, que demonstram cabalmente a importância que o mar assume para ele: «Quando a serra e o mar se juntam, não há nada a fazer nem a dizer. Com fragas e ondas, a vida fica tão perfeita, que seria uma estupidez intervir.» (Diário IV, Arrábida, 27 de Março 1949); «Transita-se bem da montanha para o mar. Não há quebras na respiração. Enche-se a alma da mesma amplitude e da mesma pureza. Todas as coisas grandes são, na verdade, irmãs.» (Diário VIII, Miramar, 1 de Setembro de 1958). Diz num outro poema, «Fui ver o mar», 1ª estância): «Fui ver o mar. / Homem de polo a polo, vou / De vez em quando olhá-lo, enraizar / Em água este Marão que sou.». Sem dúvida que Torga é sobretudo um homem do Marão, de Trás-os-Montes, de S. Martinho de Anta, a terra-natal, a de raiz mais funda. Porém, eu quis demonstrar a sua ligação ao mar. No último excerto apresentado, o sujeito poético afirma-se como homem de polo a polo, um habitante da terra, um amante da Natureza. Esta Terra que é o nosso Lar, o barco que nos conduz, como disse Cousteau, e que o homem destruiu.
Com todo o encantamento do planeta e do mar, que me motivou a escrita, vem logo um pensamento perturbador, de que não conseguimos afastamento, encravando- -se nas palavras de Jacques Cousteau, o famoso oceanógrafo e activista em prol do planeta, não esquecendo o que propalou sobre a importância ambiental da Amazónia através dos seus estudos. No pensamento perturbador aparece a ilha de lixo ou ilha de plástico que flutua no Pacífico, triplicando o tamanho da França e é o maior depósito de lixo oceânico do mundo com 1,8 triliões de pedaços de plástico flutuantes. Há quem lhe chame o sétimo continente. Charles Moore foi o primeiro descobridor e denunciou a monstruosidade. Este capitão e oceanógrafo norte-americano ficou horrorizado quando em 1997 voltava com seu veleiro de uma famosa regata náutica: tropeçou com um mar de plástico tão extenso que precisou de sete dias para atravessá-lo. Como tenho falado de mar, não menciono as lixeiras a céu aberto que se encontram em terra (como, por exemplo, a do deserto do Atacama, no Chile). Não me larga o pensamento perturbador: as alterações climáticas que, desenfreadamente, provocam calor e mais calor, fenómenos extremos e mais fenómenos extremos, mortes e mais mortes. Alguém, que foi companheiro do meu intervalo de mar, me disse na nossa conversa sobre alterações climáticas: isto vai para o caos e quero ver o que acontece, sobretudo aos que querem aumentar riqueza à custa do próprio planeta e da humanidade.
Volto a Miguel Torga e ao que me comprometi a provar sobre o seu amor ao mar e à terra. No poema que vou transcrever («Quando chegar a hora», Cântico do Homem) está uma implícita herança de continuidade humana, que se talha em cada morte e em cada renascimento:
Quando chegar a hora decisiva,
Procurem-me nas dunas, dividido
Entre o mar e a terra.
Marujo e cavador, tanto me quer a espuma
Como a folhagem.
Mas se a grande aventura que se espera
Tiver o mesmo fruto sal e seiva,
Venham roubar-me às ondas que namoro
E à sombra das montanhas que nos cobre
Com ternuras de amante.
Levem-me nu à festa do combate
Que vai unir os mares e os continentes.
Marujo e cavador, terei o mar inteiro
Das esperanças humanas,
E a terra universal
Da redonda e alada perfeição.
Tal como iniciei, fico a ouvir, lá longe, um fragor de mar em noite de lua cheia e de maré que começa a encher, numa terra universal de redonda e alada perfeição. Com ternuras de amante.