30 julho 2014

Carlos Semedo
Férias

Ana prepara as malas das férias como arruma a fruta, os pratos, os detergentes e os remédios. Tudo meticulosamente pensado e sem espaço para o improviso. Como é seu hábito, tem o rádio ligado e vai ouvindo músicas, conversas e as notícias Estas últimas falam de Gaza, da Ucrânia, do IRS, do BES e do Benfica. Ouve com atenção, pragueja interiormente e, contudo, continua a arrumar roupas de forma cuidadosa. Como sempre. Explicam agora o que é que vai acontecer aos vencimentos dos funcionários públicos Mais um corte. Ana trabalha numa empresa privada. Precisando, ainda trabalha, pois só tem garantidos dois meses após as férias. Os patrões já avisaram que, caso não ganhem um concurso, vão ter de começar a despedir. Bela maneira de ir para férias, com a corda no pescoço e, agora, lá vêm mais uns cortes para piorar a coisa. O marido de Ana trabalha numa Universidade pública e já esteve na lista para sair do seu emprego de sempre.
Habituou-se a acreditar que quando quase tudo se desmorona à sua volta, é importante manter a ordem e a arrumação. É nesse momento que cuecas bem dobradas, meias no sítio, camisas impecavelmente engomadas parecem ser uma peça fundamental do sistema e dar sentido à vida, essa permanente incógnita. Agora, enquanto ouve que o marido vai ter o seu salário, mais uma vez, amputado, pensa que ainda tem alguma sorte, pois pode fazer umas curtas férias, em casa de um tio, junto ao mar. Mudar de ares, andar na areia, nadar quando possível e olhar aquele imenso azul até que toca no céu e se confundem no horizonte, são perspectivas, apesar de tudo, muito encorajantes. Do mal, o menos, ainda temos salário.
O sonho de ter um filho ainda não se cumpriu. Aliás, os sonhos passaram quase todos para segundo plano. Não há tempo, disponibilidade mental e força para sonhar. E sem condições mínimas, não se pode responsavelmente pensar em crianças. Dizem as notícias que a Segurança Social é insustentável, mantendo-se a taxa de natalidade actual e que quando nós chegarmos, se chegarmos, à idade de reforma, poderemos não ter nada para nos amparar os últimos dias. Ana acredita, mas acha irresponsável, nesta situação tão precária, dar este passo com que sempre sonhou.
Está agora na parte dos cremes hidratantes, shampoo, pasta, escovas de dentes e pensos diários e é preciso ter muito cuidado com as embalagens, verificar se estão bem fechadas, selar algumas com fita, verificar o frasco de perfume unissexo, colocar uma embalagem de cotonetes, não esquecer o protector solar. Enfim, tudo a precisar de cuidados e a cabeça bem ocupada com a ordem e a organização.
Na rádio falam do BES, que já foi mas já não é o banco dela. Tem amigos que lá trabalham e começa a pensar que se a coisa correr mal, eles ficam sem trabalho e ela não pode ajudar muito. E ela, que nunca foi muito dada a pessimismos, pensa: como é que podemos viver em tempos onde o insuportável penetra no nosso quotidiano, das mais diversas formas e sem nos dar tréguas? 

30/07/2014
 

Em Agenda

 
29/05 a 12/10
Castanheira Retrospetiva Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco
02/08 a 26/10
Barro e AlmaMuseu Francisco Tavares Proença Júnior, Castelo Branco
06/08 a 14/09
O Vestido da minha vidaGaleria Municipal de Oleiros
06/08 a 30/08
Quando a Luz do Teu Corpo Me CegaSociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa

Gala Troféu Gazeta Atletismo 2023

Castelo Branco nos Açores

Video