20 de julho de 2016

Maria de Lurdes Gouveia Barata
CENAS QUOTIDIANAS QUE PARECEM ANEDOTA

Foi um dia de inúteis agonias.
Dia de sol, inundado de sol!...
Fulgiam nuas as espadas frias…
Dia de sol, inundado de sol!...
Camilo Pessanha

Cada dia nos traz agonias, algumas inúteis, cada dia nos traz alguns falsos sorrisos, alguns medos e, o que é pior, a indiferença crescente dos homens perante o que estão a aceitar como normal. Surpreendem-nos situações do quotidiano? Então ainda temos o dom de sentir ou de nos emocionarmos, o que parece estar um tanto fora de moda.
Apetece-me hoje narrar situações do quotidiano, verídicas (já começam a despertar curiosidade?), com a promessa a mim própria de não comentar e com a firme intenção de fazer pensar (longe de mim a lição de moral…). Lembro um poema de Cecília Meireles (perdoem-me os que me lêem se já o citei alguma vez, até julgo que sim) que fala duma indiferença quotidiana que fere e nos torna mais sós. Dos seis tercetos do poema cito os dois primeiros: «Como se morre de velhice / ou de acidente ou de doença, / morro, Senhor, de indiferença. // Da indiferença deste mundo / onde o que se sente e se pensa / não tem eco, na ausência imensa. (…)». Não é um poema somente apelativo contra a indiferença perante os velhos, como tem sido frequentemente dito, mas muito mais abrangente. Vamos às situações:
1 - É sábado. Sábado de manhã com momento de compras no Mercado Municipal, no supermercado mais abaixo, brisa da manhã a beijar fresquinho, aromatizada com as hortaliças verdes a espreitar dos sacos. A avenida está pejada de movimento, com carros em segunda fila, olhares voltando-se cautelosos não vá aparecer a polícia, corrida e corridinha na manhã citadina de sol, verde e azul e de brisa saborosa. Buzinadelas, outro elemento que não podia faltar no viver urbano.
De repente, o estrondo. O choque. Pára a manhã, pára a corrida, espreita a curiosidade pela perturbação do momento. Um carro, por inabilidade ou por distracção, pouco interessa, bateu num outro que está parado e sem dono presente e abre-se a expectativa. O condutor ofensivo sai, rabisca um papel, coloca-o no pára-brisas do automóvel ofendido, reentra calmamente no seu carro e arranca. «Vá lá, ainda há cavalheiros. Deixou o contacto para poder indemnizar dos prejuízos». Recomeça a marcha, recomeça a corrida, retoma-se a manhã. O homem do carro amolgado passa do ar de espanto para o papel do contacto – um contacto de homem civilizado e respeitador, decerto. E lê: «Hoje foste tu, amanhã posso ser eu».
2 - É dia de semana. A cidade funciona habitualmente, lojas abertas, cafés convidativos, início de viagem de carro para os empregos. Contrariedade do professor que quer sair da garagem e tem um carro em frente, roubando-lhe essa hipótese. Olha o relógio. Não está atrasado, não dá, porém, para perder tempo. O professor é calmo. Buzina uma e outra vez para alertar o dono do carro prevaricador. E nada. Mas o professor é calmo. Olha o relógio, deixa de buzinar e entrega-se ao acto de esperar. Entretanto, as buzinadelas chamaram a atenção dos vizinhos conhecidos e doutros que passavam, que se foram solidarizando com a espera. Finalmente: o dono do carro prevaricador sai calmamente duma loja próxima, acompanhado. É interpelado. «Desculpe, mas estava…». O professor é calmo: «Esperei dez minutos sem poder sair daqui, buzinei, o senhor não veio, não se importou. Se quiser, vá beber um café, que eu espero mais dez minutos».
Gargalhada geral dos solidários à volta. O dono do carro prevaricador: vermelho que nem um tomate.
3 – Tarde de sexta-feira num largozinho da cidade com duas lojinhas, um restaurante com esplanada, um sapateiro de arranjo rápido. Barulho de uma garagem a abrir-se, condutor de carro pronto a avançar. Foi o que ele pensou, mas já as avós diziam que a pensar morreu um burro. Em frente da saída um carro com uma criança dentro. Tornou a pensar que era tempo rápido e ele estava com pressa. Buzinou. Nada. Voltou a buzinar. Nada. Resolveu ir às lojas do outro lado da rua e perguntou se estava o dono do carro. Estava. Uma senhora. Pouco lhe ligou, nem sequer pediu desculpa (ficou apanhada, voltou ele a pensar). Ela dirigiu-se ao carro, disse qualquer coisa à criança. Espanta-se ele, constata com espanto: a senhora não dá explicações e volta para a loja! Isto já era de causar vertigens no pensamento. Então dirige-se também à loja, dirige-se à senhora: «Mas a senhora tira dali o carro ou quer que eu chame a polícia?!» «Chame a polícia!». Isto já não dava para pensar logicamente, a ira e a revolta empurraram-no a caminho da porta loja com um ainda por cima é burra! «O senhor está a injuriar-me e sou eu que chamo a polícia! Vai pagar-me uma indemnização de milhares de Euros, ainda fico a ganhar mesmo pagando a multa!». As queixas seguiram na polícia.
4 – Esta é narrativa breve, mas enche um continente: a ameaça de sanções a Portugal por prognósticos de não cumprimento do défice ou porque o governo anterior prevaricou (se não foste tu, foi teu pai há um ano) – eis um fenómeno de MULTAS ANTECIPADAS ou PREVENTIVAS sem haver culpa palpável…
Assim roda o planeta azul com homens dentro que o tingem de negro…
Situações dum quotidiano. E não são anedota. E não podemos ficar indiferentes. Disse Bernard Shaw que a indiferença é a essência da desumanidade.

20/07/2016
 

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