30 de março de 2016

Maria de Lurdes Gouveia Barata
AS LINHAS QUE PERDURAM, UM NOVO LIVRO DE ANTÓNIO SALVADO

AFLORAMENTO DE LEITURA

Ciente? Na brancura / da folha de papel/
as linhas que perduram / para sempre indeléveis?
AS LINHAS QUE PERDURAM, «LABOR», p.65

Sempre a folha de papel em que se incrusta a escrita, o poema, a folha de papel em que se interroga a arte de criar, a folha de papel em que se interroga a capacidade de guardar o poeta e destinada aos leitores que hão-de fazê-lo perdurar. Há uma interrogação sobre a escrita que pode eleger um destino de linhas que perduram.
O título de um livro torna-se antecipação de leitura, daí que eu escolha uma linha de abordagem: a de perdurar. Atenho-me ao poema inaugural, «ESTÓRIA DO AEDO». Um tempo presente instaura o momento da já longa caminhada do poeta no questionamento: «Donde regressas, caminheiro enfermo?», inscrevendo circunstâncias do acto de criar – o sofrimento da escrita, «nem sequer murmúrio de palavras», «mãos tolhidas», olhos de lágrimas; todavia há o apelo contínuo a si próprio, sempre na continuidade da criação - «Mas guarda em ti o derradeiro raio / do sol rompido em cada madrugada», que traz a luz, motivo sempre presente na obra de António Salvado: a luz mais pura é a da madrugada, a luz do fulgor do acaso que lhe encheu os passos. A caminhada do poeta vem do passado, teima no presente e projecta-se no futuro, que é evidência no último terceto do poema: a luz dos poemas que preserva a caminhada, a música dos poemas que será ouvida para sempre, num sortilégio de poeta, «exímio aedo», «dos deuses fadado», na linha duma predestinação quase divina de ser poeta, como (a título de exemplo) em Torga, na concepção duma majestade atribuída a esse ser poeta.
A linha que perdura num caminheiro da vida, à qual foi atento, é a do poeta, o construtor da beleza que preserva essa vida. Perdura ainda o tempo renovado ao ritmo das estações («DOS RETALHOS DA VIDA», p.17), que a alma do poeta imita nos sonhos renascidos sempre (ibidem, 2ª est.). Muitos dos poemas da I parte (DA VIDA / DA MORTE), dezoito dos trinta e oito que a integram, são dedicatórias a amigos, poetas, figuras tutelares, segurando um tempo in memoriam, num registo de palavra poética que irá perdurar, tornando indefectível a lembrança. O tempo passado, enquanto dor de ausência (cf. p.56, «SEMPRE ATENTO»), perpetua-se também: «Nada foi transitório / nas sendas do passado, / pois hoje cada hora / com mais vigor renasce.» («SEM INTERVALO», p.66).
Nas linhas que perduram posicionam-se os lugares de vivência do poeta, que persistirão na memória, que estão vivos por comparação com a mudança e estão vivos no coração que os traz do passado. Lugar de viver é ALBICASTRO (p.16), onde também viveu o Amado Amato e que foi berço de aprender a ser maior; é a Sé Catedral da cidade, poema (p.30) dedicado ao irmão Olímpio e que diz do granito ancestral, que se enquadra no granito da Beira Baixa. E há os lugares da Natureza circundante, o terreno pisado, a vegetação aprendida e sentida.
O poema «AOS VERDES ARDIDOS DOS MEUS LUGARES» (p.57) carreia uma ambiguidade, com a possível descodificação por cada leitor. Como o título preconiza, os verdes, com abrangência de vegetação e floresta, arderam e apagaram pegadas de infância, havendo braseiros, perguntando o poeta: «Como aceitar agora que a caruma / dos pinheiros não seja mais que lama: (…)» e há o registo de «as cinzas [que] ensombrecem as ravinas» e de «as casas [que] se derrocam na planície», instituindo uma mudança devido a um incêndio no sentido literal, que alterou uma paisagem vivida. Não é, porém, a minha leitura, não é o que sinto no poema: é antes uma metáfora de incêndio, provocado pelo tempo que passou, com um olhar que não coincide com o olhar do passado, apresentando uma imagem que não coincide com a de um outrora. É uma mudança de si, mesmo que seja mudança do lugar na procura desse lugar, que ficou num tempo perdido para sempre. Ainda assim, os lugares perduram, deram-se passos, ficaram pegadas, ficaram sulcos, lexemas repetidos em vários poemas, que se associam a vivência na terra e a vestígios dessa vivência, como um rasto que se persegue, um rasto que perdura. Emerge a saudade, que é guardiã de lembrança do ter vivido – é «grato recordá-los» («OS LUGARES», p.67), «outrora palmilhados / que deles a saudade / é luz de água corrente» (p.67). O caminheiro da vida encontra outros lugares, o que não impede que os já palmilhados sejam os lugares (p.67).
Retorno a uma Natureza ridente, primaveril, fecunda, em explosão de vida, com subtil sensualidade do desejo da relação amorosa, eis os poemas da III parte, A GAZELA FUGIDIA. Fugidio é o tempo e estamos perante a dimensão de um símbolo do que é veloz – a gazela - e logo desaparece, símbolo da vivacidade e da beleza e os vários poemas desta parte oferecem-nos aproximação e fuga, jogo de olhar, um olhar exterior e um olhar interior. Há uma pureza primordial ligada à gazela, com ambiência de liberdade e fecundidade que se evola, mas apesar de tudo eterna, porque há retorno. Há uma nota do poeta nesta III parte: «elementos para um outro Cantar dos Cantares», com laivos de inspiração no Cântico dos Cânticos bíblicos.
Contudo, o que se entroniza em AS LINHAS QUE PERDURAM no âmbito da perdurabilidade é o Amor e a Esperança, motivos sempre presentes na obra salvadiana: «e tudo o que dentro dos olhos se reteve / por longo tempo: o amor confiante e perene» (p.57). «DOS RETALHOS DA VIDA» (p.17) regista assertivamente, na segunda estância, o poder do amor e da esperança para um constante renascer: «Também de cinza algumas vezes feitos, / esses retalhos são porém a prece / que a boca da ternura e da esperança / soube soltar em sonhos renascidos / quando a secura ameaçava a vida». O amor reconcilia os opostos e torna firme o passo do homem na terra. A análise de qualquer obra poética de António Salvado conduz-nos sempre ao amor na sua face de eu-tu, de gosto pela vida, de solidariedade humana. No poema dedicado À memória de Pablo Neruda (e nitidamente inspirado na sua poesia) – «SE UMA CANÇÃO DESESPERADA» (p.55) – canta assim: «Porque o amor em cada coisa existe /à espera de brotar em cada semente, / (…). Por imitação da Natureza, de renovação constante, da vida que toma sempre nova forma de força e até de embriaguez no próprio acto de viver, surde a esperança, que é alento para continuidade e motivação para novos sonhos: «a esperança rompe nos confins do sangue / a circular sem nada que perturbe / o íntimo fervor que ela derrama / (…) (p.55).
Perdura o amor, perdura a esperança, perdura a vida, tudo perpetuado em arte de escrita, que perdura em AS LINHAS QUE PERDURAM de António Salvado.

30/03/2016
 

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