JOSÉ DIAS PIRES
Tentações em tempo de Quaresma
Porque parecem novas as velhas palavras?
Quase todos os dias nos caem em cima o peso de velhas palavras como sustentado e sustentável. E são pesadas porque os novos discursos são apenas como as velhas estatísticas e os novos biquínis: aumentam aparentemente o peso do que é verdadeiramente leve e mostram, como evidências, o que toda a gente pode ver, escondendo o que verdadeiramente interessa.
Usadas com mestria, as velhas palavras sustentado e sustentável, sempre compuseram, na aparência, os novos discursos, mesmo que disfarçadas de heranças.
Convidei La Fontaine a escrever uma nova fábula sobre a matéria, e ele fez-me a vontade.
O ELEFANTE* NA LOJA DE PORCELANAS
Recebida após a morte de um afastado parente, a loja não era uma herança, mas sim um desafio lançado à desastrada agilidade do elefante. Tentando imaginar o que teria pela frente, ao tomar posse do que lhe deixara o tio, o enorme paquiderme não estava nada confiante. Temia confirmar o que sobre os seus era dito sempre que entravam nas lojas de faiança: «Chegou o pico da escala de Mercalli, protejam os jarrões!»
Ele, em pachorrenta marcha, caminhava aflito, aumentando a tensão na diminuta esperança de vencer a previsão das tradições.
No bairro todos sabiam quem era o novo herdeiro, e faziam-se apostas sobre quanto tempo duraria, na vetusta loja, inteira a porcelana. Antevendo a catástrofe, o povo inteiro, por entre empurrões e incontida gritaria, ao largo fronteiro confluía em caravana.
Chegado o elefante ao seu destino, perante a inesperada e coletiva receção, parou antes de entrar no tesouro chinês. Definiu um passo harmonioso e fino que evitasse a menor trepidação e entrou em marcha atrás de uma só vez.
Cá fora, a mole humana parou de respirar, esperando ouvir, no som dos cacos, o natural epílogo daquela espera.
Lá dentro, recuava o gigante, sem pensar, no medo que alimenta os fracos, até chegar ao balcão, entre suores. Vencera.
Vivendo a satisfação de ter vencido o desastre antecipado pelo povo, não deu os saltos esperados no momento, mas agitou tromba e orelhas em gozo incontido, gerando, sem saber, um cataclismo novo, numa mistura de estalos e de vento.
E, pela porta, saiu a loiça veneranda, transformando em cacos as mais-valias, ficando, o bairro todo, de cara à banda, por tais inesperadas alegrias.
Quem se finge comedido e recuando anda para segurar aparentes acalmias, engana-se pensando que comanda os festejos que geram ventanias.
Enfim, todos os dias nos são servidas de sobremesa as velhas palavras como se fossem farófias.
Gulosos, caímos na tentação de engoli-las porque são muito mais volumosas que densas e, em tempo de crise, nos garantem, aparentemente, a tranquila digestão das farófias, melhor, das bazófias sustentadas e sustentáveis dos candidatos a uma qualquer cadeira de poder, local ou nacional.
Tentações em tempo de Quaresma.