7 de junho de 2017

VALTER LEMOS
AS REVOLUÇÕES DA HISTÓRIA E A LIBERTAÇÃO DA MULHER

De acordo com a Física o Universo tem cerca de 13,5 mil milhões de anos. A biologia diz-nos que a vida na Terra tem cerca de 3,8 mil milhões de anos. O género homo tem cerca de 2,5 milhões de anos e a espécie homo sapiens (a que pertencem todos os humanos atuais) tem cerca de 150 mil anos, tendo iniciado o fabrico de instrumentos e artefactos há cerca de 70 mil anos e dando assim início ao que hoje chamamos cultura.
Esta foi, sem dúvida, a primeira grande revolução da humanidade. No fundo a que deu origem à própria humanidade, como hoje a conhecemos. O homem, hoje, ao contrário de há cem mil anos, já não é só uma espécie biológica como todas as outras, mas é também a única espécie cultural existente.
Enquanto a evolução biológica é lenta, a evolução cultural é muito rápida. Do austrolopithecus ao homo sapiens foram precisos mais de 2 milhões de anos, mas, do machado de pedra ao avião ou ao míssil teleguiado ou das pinturas rupestres até ao cinema ou ao vídeo, 15 ou 20 mil anos foram suficientes. E para chegar das tábuas de barro sumérias de registo cuneiforme de transações até à Eneida de Homero e às tragédias gregas bastaram menos de 3 mil anos!
Grande parte desta evolução cultural deve-se a revoluções, ou seja, a movimentos relativamente bruscos de alteração da organização humana. O primeiro parece ter sido o início do fabrico de artefactos e instrumentos (machados, arcos, flechas, agulhas, etc.) há cerca de 70 mil anos. Tal teve duas enormes consequências. A primeira foi a de trazer uma significativa e progressiva vantagem competitiva aos sapiens, que assim puderam aniquilar progressivamente os outros humanos pertencentes a diferentes espécies como os neandartais (apesar destes serem maiores). Mas, segundo diversos antropólogos, o que permitiu esse salto dos sapiens foi o desenvolvimento de capacidades cognitivas de linguagem complexa que permitiram o desenvolvimento de redes de cooperação entre grandes grupos de indivíduos e a criação de ordens e regras imaginadas e abstratas. A que se deve o facto dos sapiens desenvolverem essas capacidades e os outros humanos não? Não sabemos ao certo, mas que está ligado ao desenvolvimento do cérebro parece inequívoco. Assim essa evolução biológica originou a primeira revolução cultural – a Revolução Cognitiva. A partir desta deixou de haver um modo de vida natural para o homem, passaram a existir apenas escolhas culturais.
A segunda grande revolução cultural foi a criação da agricultura. Há 15 mil anos o homem domesticou o cão, há 11 mil anos domesticou o trigo e a cabra, há 7 mil anos domesticou a oliveira e há 5 mil e quinhentos a videira. Ainda hoje mais de 90 por cento das calorias que alimentam a humanidade provêm das plantas que foram domesticadas entre 12 e 5 mil anos atrás (trigo, milho, arroz, batatas e cevada).
O que trouxe a agricultura? Mais alimentos, mas, também maior eficiência na gestão dos mesmos. Consequência? A enorme explosão demográfica. Há 12 mil anos existiam, em toda a Terra, 5 a 8 milhões de humanos, todos recolectores, ou seja, alimentando-se de plantas espontâneas e de caça. Na contemporaneidade de Cristo eram mais de 250 milhões de humanos alimentando-se quase todos da agricultura (subsistiam somente 1 a 2 milhões de recolectores).
A Revolução Agrícola mudou radicalmente a organização das sociedades humanas: sedentarismo, redução drástica do território da maior parte das pessoas, alteração radical do habitat e, acima de tudo, a invenção do futuro. Os humanos recolectores só tinham presente. Caçavam para se alimentar e nem sequer tinham possibilidade de preservar alimentos ou acumular bens. O seu constante nomadismo limitava muito os exercícios de planeamento que para aos agricultores eram essenciais. O ciclo agrícola exigia que pensassem no futuro e trabalhassem para ele. Era preciso produzir mais para acumular reservas para… o futuro, que podia ser mau. Era necessário não só planear as sementeiras e as colheitas, mas, também os excedentes. E planear a irrigação das terras para quando não havia chuvas ou quando havia inundações. Para planear o futuro, gerir as condições de produção, gerir os excedentes, transportar os alimentos, organizar redes comerciais de distribuição, gerir conflitos, criaram-se os primeiros sistemas sociais e políticos de larga escala. Surgiram elites e governantes que sustentavam a política, a guerra, a arte e a filosofia.
Assim surgiu a história. Feita por alguns, enquanto todos os outros cultivavam os campos.
Nos últimos 500 anos teve lugar outra revolução cultural que voltou a mudar radicalmente a humanidade. A Revolução Científica. A ciência mudou tanto o mundo em tão pouco tempo que quase parece impossível quando olhamos retrospetivamente. A eletricidade, o telefone, os arranha-céus, os automóveis, os aviões, a rádio, os computadores, os telescópios, as viagens espaciais, a energia nuclear, os antibióticos, os transplantes, etc, etc. Em 1500 havia 500 milhões de humanos, hoje há 7 mil milhões. Em 1500 a humanidade consumia cerca de 13 biliões de calorias de energia por dia, hoje consome 1500 mil biliões!!
A Revolução Cientifica resultou de uma aliança entre a ciência, a política e a economia, tendo em vista a obtenção de novos poderes pelos homens. Mas esta história é tão densa que não pode ser convenientemente explorada neste artigo.
A Revolução Cientifica é constituída por diversas revoluções internas, das quais as mais importantes são a revolução industrial e a revolução liberal que marcaram profundamente a organização da humanidade (há quem veja na revolução digital em curso outro momento crucial da revolução científica). Mas, da revolução liberal resultaram várias con-sequências na organização das relações individuais e coletivas que foram provocando sucessivas mudanças.
As sociedades humanas complexas parecem requerer, ao longo da história, a construção de hierarquias imaginadas, com base em características próprias ou atribuídas como a casta ou a cor da pele ou o dinheiro que regulam as relações entre as pessoas tornando umas, legal, política e/ou socialmente superiores a outras. A mais antiga dessas hierarquias é a de género, que perdurou e resistiu às várias revoluções culturais. Alguns dizem que a razão se deve ao facto de ela ter uma base biológica (e assim a justificam). Na verdade, a razão é bem equívoca, ao contrário do que parece. A diferença de sexo (macho/fêmea) não é igual à diferença de género (homem/mulher), porque a primeira é biologicamente determinada e a segunda é cultural. As qualidades masculinas e femininas são atribuições culturais que, por isso, vão mudando. Ser macho é ter um cromossoma Y, ter testículos e testosterona. Isso é uma constante biológica há milhares de anos. Mas ser homem é o quê? Luís XIV que era considerado um modelo de masculinidade na sua época, usava, como outros homens importantes, saltos altos, meias justas até ao cimo da coxa, peruca e roupas compridas cobertas de enfeites e brilhantes.
Ser fêmea é, sem dúvida, ter dois cromossomas X, ter útero e ovários, ter pouca testosterona e muito estrogénio. O mesmo que era há milhares de anos. Mas, ser mulher o que é? Há cem ou duzentos anos, e em alguns casos há muito menos, em quase todo o mundo, ser mulher era não poder votar, ser tipicamente iletrada, não poder ser juíza, não poder ocupar cargos públicos, não poder decidir com quem casar e até ser propriedade, por lei, do pai ou do marido. E hoje ser mulher não é muito diferente? Pois, tal prova que a categoria é cultural.
A libertação da mulher ocorrida no século XX, nas sociedades ocidentais e um pouco por outras partes do mundo é, pois, uma das mais importantes e profundas revoluções da organização humana. E não deixará de marcar profundamente a história do homo sapiens.


07/06/2017
 

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