Lopes Marcelo
MOSAICO CULTURAL VIVA A MEMÓRIA
O tempo que vivemos é propício ao esquecimento e à fragmentação erosiva da memória individual e, sobretudo, colectiva. Quase tudo se tem tornado descartável, comprometendo-se a fruição reflexiva e comtemplativa, o dar-se tempo ao tempo par se viver e saborear o que realmente é importante, porque genuinamente simbólico e autêntico.
Considero, de forma cada vez mais convicta, que esta onda vai atrás de uma falsa noção de modernidade, traduzida num consumismo apressado que representa muitos perigos. Um deles implica o risco da rasoira das identidades locais pelo progressivo desaparecimento das marcas patrimoniais identitárias do território e das pessoas que laboriosamente o habitaram e humanizara. Poder-se-á, assim, falar de verdadeiro progresso? De equilíbrio e justiça social inclusiva e de valores assentes no diálogo e solidariedade entre gerações?
É o conhecimento do passado comum que nos pode irmanar no presente de modo a assegurar o sentimento de pertença às nossas terras. Revisitar o passado de forma solidária é a melhor forma de transmiti-lo às novas gerações no enlaçar da teia dos afectos e no reforço da auto-estima. Não basta herdar passivamente as jóias culturais da tradição. Há que merecê-las, dignificando-as e usufruindo-as. Tal processo de empenhamento criativo, de personalidade e coerência cultural e política, implica abrirmo-nos ao abraço fecundo entre o passado e o presente, tornando-o mais enriquecido e partilhado.
Ao valorizarmos as artes, os ofícios e os saberes tradicionais não o devemos fazer numa perspectiva de mera celebração do passado. Antes, importa que se consiga inovar de forma autêntica e qualificada, peneirando a memória, combinando a tradição com inovação e design, de modo que a fruição seja adequada aos nossos dias com respeito pelas nossas raízes e identidade cultural. Para tal é indispensável que nos assumamos cuidadores da memória, da memória individual em que cada pessoa se reflecte, como ponto de partida. Contudo, também pelos valores da tradição, já memória colectiva. Este é um eixo essencial da nossa herança cultural ainda próxima e viva que é composta pelas lembranças, as vivências e os saberes das pessoas mais idosas com quem ainda temos oportunidade e até o privilégio de conviver. Será que convivemos mesmo? Será que temos tempo para o seu vagar nas conversas e gestos cada vez mais lentos? Para os seus queixumes mas, também, para escutar até à ultima nota a sabedoria das suas histórias, cantigas e experiência de vida? Mas é da revisitação da memória no entorno da identidade, da identidade das nossas comunidades que se trata, para que o presente seja mais partilhado e enriquecido e o futuro tenha horizonte e sentido.
O aprofundar do conhecimento, diria da sabedoria de vida, pelo diálogo e partilha de proximidade com os mais idosos, na vibração dos laços da memória, pressupõe um ambiente e relacionamento propício à confiança e à cumplicidade. Em épocas anteriores acontecia naturalmente nas famílias, em que conviviam as várias gerações. Hoje tal convívio, por exemplo entre avós e netos, é cada vez menos intenso e mais raro. A designada terceira idade é arrumada cada vez mais em Lares residenciais de fim de vida. Contudo, outros ambientes ainda restam em associações culturais e recreativas, em Centros de dia e, mais recentemente, nas designadas Universidades ou Academias seniores em que logo a seguir à reforma ainda há energia e vontade para a celebração, a partilha e o enriquecimento da sabedoria da vida. Mais do que adquirir novos conhecimentos, trata-se de novas oportunidades de as pessoas se sentirem úteis na partilha de experiências de vida e de saberes. Trata-se da valorização da auto-estima em afectuoso convívio em que a memória de cada pessoa é ponto de partida para a revisitação e reconstrução da memória colectiva.