Carlos Semedo
TEMPO
Um dia como muitos outros. A manhã anunciou-se com o despertador digital aos gritos, uma sonoridade que pede fuga rápida para outro lugar. Não é possível, será mais um dia intenso, preenchido e vazio. Durante a próxima hora e meia, os gestos serão automáticos aparentando uma leveza natural. O olhar fugaz para os relógios que são paisagem, esta é uma casa povoada de relógios, marcam um tempo conhecido, interiorizado, vivido na inevitabilidade. Não é uma métrica fácil, exige atenção e cuidados constantes. A musicalidade, essa, corresponde à intensidade das vozes e da resistência à acção imperativa.
Todos aqueles ponteiros carregam o peso da noite mal dormida, a urgência do gesto presente, dominado pela agenda, horas minutos e segundos passados sem os poder sentir.
O automóvel é um instrumento harmonioso, também tem o seu relógio, rádio sintonizado na estação que mais notícias debita por minuto e parece ter piloto automático. É possível adiantar algum trabalho, usando o telemóvel, avisar que a reunião das 9h15 vai ter de começar um pouco mais tarde, houve um acidente junto ao estádio, e, maravilha dos tempos, os miúdos vêem as suas séries preferidas nos ecrãs embutidos. É assim, cinco dias por semana. Cem minutos, seis mil segundos por dia, um total de trinta mil semanais. É este o tempo que marca o início destas manhãs.
A produtividade vai encarregar-se, em seguida, de multiplicar estes milhares de segundos numa teia de complexo ruído comunicacional, tarefas urgentes, inadiáveis, impositivas, prosseguindo uma lógica de produção optimizada. Serão horas de frémito absoluto, as quais, independentemente do grau de satisfação pessoal, preenchem de vazio o tempo. Um vazio diligentemente produtivo, reforce-se. Aqui, nem é o relógio que impera. O que importa é a acumulação de tarefas, mais ou menos organizadas que resultam na ilusão da produtividade plena.
É Inverno, a noite já se anunciou há algum tempo. Não deu conta da transição. Nas férias, adora ver o por do sol, mas hoje, mais vinte e quatro horas passam e a noite parece dia e este confunde-se com a noite. Já sabe que vai dormir mal e nunca mais é sexta-feira.
Ainda falta a corrida final, ir buscar os miúdos à explicação, fazer umas compras de última hora e, já em casa, dirigir a orquestra até ao aplauso final, uma performance digna de flores, das quais só o perfume dos lençóis lavados no fim-de-semana dão uma suave sugestão. O filme de hoje, na RTP2, é bom, mas sei que vou dormir ao fim de uns dez minutos, seiscentos segundos. Vou gravar e engrossar as horas de gravações, toda uma filmografia em lista de espera, caoticamente arquivada. Nos tempos da universidade, ia frequentemente ao Cinema. Agora só às vezes, com os miúdos, ao fim-de-semana ou nas férias, a maior parte das vezes com eles, no meio das pipocas e ruído na sala. Deixou de ser uma sala escura, para se transformar numa espécie de festa de aniversário.
O ruído dos dias transfere-se para o fim-de-semana, onde tem lugar a esperança da ocupação do tempo perdido. Parece um cenário dolorosamente preocupante, mas não. Nas férias, recarregará as baterias.