Antonieta Garcia
IN MEMORIAM…
O que aconteceu, Lara? Tapaste os ouvidos com as mãos para não ouvires gritos que doíam tanto? Refugiaste-te debaixo da cama, da mesa, para não veres, bofetões, pontapés, voos de cadeiras, agressões? Ai Lara, que tristeza tão triste a vida feita de medo do homem /monstro possuído de fúria demoníaca que, em desaforo louco, maltrata, odeia, destrói! Naquele dia, ninguém ouviu o teu choro, pequenina? E a tua avó?
Esta é mais uma história de injustiça, das muitas que se conhecem, povoadas de heroínas, mártires, mulheres comuns, conformadas… e de outras que sempre viveram enterradas no medo! Ouço-vos: “Lá vem ela com «coisas de feminista» …” Venho. Os números aterram. As 9 mulheres assassinadas, no mês de janeiro de 2019, revoltam, interpelam-nos, culpabilizam. Sei que folhear memórias do feminismo, significa perdermo-nos numa floresta de hesitações, hipocrisias, recuos, continuidades, retrocessos… Avanços? Também há! Mas quantos espelhos deformantes tendem a distorcer a visão de uma imagem real? Vozes velhas argumentam: “Já cá encontrámos isto! Sempre foi assim…” E seguem o trilho da formiga, irmãs do desassossego e desespero, vítimas de uma urdidura trágica. Ao longo da vida, somam impropérios, insultos, enxovalhos, infidelidades, verrinas, conspiratas malévolas… O silêncio é quebrado, quando a notícia chega ao écran da televisão e não há nada a fazer. Então, é a hora de soarem jeremíadas, de criar comissões… Que massacre é este?
(Como foi contigo, Lara? Quanto tempo durou a tortura? Menina linda, descansa!)
Valham-nos as lutadoras, as resistentes. Olympe de Gouges, ativista política, que apoiou a Revolução Francesa e ousou reivindicar a igualdade e a cidadania plena, atrevia-se: A mulher tem o direito de subir ao cadafalso; deve igualmente ter o direito de subir à tribuna. Acabará por pagar caro o sentido vanguardista dos seus textos; será guilhotinada.
(Uma companheira, Lara!)
Em Portugal, Ana de Castro Osório, Carolina Beatriz Ângelo, Maria Adelaide Cabete, Maria Veleda… entre outras, ativaram o feminismo, participando no Movimento que conduziu à implantação da 1ª República, a 5 de outubro de 1910. Então, são criadas leis de proteção à família, registam-se alguns avanços. Sol de pouca dura porque, como esclarece, M. Antónia Palla: Nem a República, nem a Monarquia lhes perdoaram a ousadia de clamarem a igualdade de direitos (…) o direito de se envolverem num domínio reservado aos homens, a Política…
(É assim, Lara, quem tem poder, manda! Quando querem, se podem, impõem o silêncio! Queres ouvir?)
Durante o Estado Novo, um livro escrito por Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno, As Novas Cartas Portuguesas, abordou temas incómodos, proibidos - a guerra colonial, o estatuto social e legal das mulheres… -. A Censura reagiu. Era a hora de sitiar a palavra feminina. A obra, acusa o censor, continha “algumas passagens francamente chocantes por imorais, constituindo uma ofensa aos costumes e à moral vigente no país”. Aconselha, por isso, a apreensão das Novas Cartas, e a instauração de um processo-crime às autoras. Cresceu uma onda de protesto contra o Estado português… e a sentença, várias vezes adiada, será proferida a 7 de maio de 1974, dias depois da revolução de abril de 74. As três rés foram absolvidas. Explicou o juiz: “(…) o livro Novas Cartas Portuguesas não é pornográfico nem imoral. Pelo contrário: é obra de arte, de elevado nível, na sequência de outras obras de arte que as autoras já produziram.” A revolução dos cravos abria um tempo de luz, de esperança na Justiça. Pouco depois, a Constituição de 1976 consagrará a Não Discriminação de Direitos entre os Homens e as Mulheres…
Em 2019, é possível inventariar avanços reais na história das mulheres portuguesas. Todavia, se a igualdade de jure é autêntica, a igualdade de facto continua à espera de melhores dias.
Num processo identitário longo, a questão da desigualdade da mulher continua, porém, a fazer correr rios de tinta. E a anorexia mental que subtilmente (ou não!) omite o feminino do desenvolvimento social, não é despicienda. O repertório de desregramentos é ameaçador. Contas feitas, ainda há pouco, um juiz foi capaz de redigir uma sentença, com citações bíblicas, que legitimava diferenças entre o adultério feminino e masculino. Não corou de vergonha. Também houve pares que decidiram resolver a questão com uma “advertência registada” ao Meritíssimo. Onde andam as vozes dos sonhadores em demanda de um mundo fraterno? Numa sociedade desprovida de luz, nove vidas de mulheres foram roubadas… Um sufoco! Até Lara, tão pequenina…