José Dias Pires
A GLOBALIZAÇÃO MATOU A ETERNIDADE INFANTIL
O avô foi buscá-lo a casa e levou-o até à praça grande do Bairro dos Doze onde se realizava o Direcionário, no qual se proclamavam, com pompa e circunstância, as decisões do Colégio Deformatório Global - quem seria Prestes (merecedor de asas) e quem seria Quase (asas cortadas).
«Não quero ir, avô.» «Tens de querer. Hoje começas a partir.»
Pelo caminho, o avô foi-o pondo ao corrente do que iria observar:
«Sabes o que é um pássaro cego?» «É um pássaro que não vê, não é?»
«Podia ser, mas não é. Um pássaro cego é um pássaro que não voa, como tu.» «Como eu?» «Sim, como tu, se ficares por cá. Aqui, na Cidade Global, serás sempre como a coruja preta do João Cego. Repara nele, e aprende.» «Aprendo o quê, avô?» «Aprende a ver.» «A ver? Mas eu vejo bem!» «Mas não voas. Nunca poderás ver, se não souberes voar.» «E o cego voa?» «Voa, claro que voa.» «Como, se não vê?» «Vê mais que todos nós de olhos abertos, e tu sabes isso.»
E lá foram.
Na praça grande, para espanto seu, acompanhados dos respetivos familiares, estavam todos os alunos que tinham completado o quinto ano.
O sol era radioso, mas o ambiente era carregado. A Filarmónica tocou o Hino da Congregação Global, lançaram-se doze foguetes e, de imediato, o Presidente levantou-se para discursar. A assistência agitou bandeirolas cinzentas com riscas azuis escuras.
O avô segredou-lhe ao ouvido: «Finge que acenas, mas não sorrias. Vê, vê tudo com a máxima atenção, Liberto. Não queiras nunca ser o Quase Liberto Chapado, nunca.»
Apesar daquela agitação, aparentemente exuberante, pairava no ar uma das descrições que o seu pai fizera para a infelicidade, e que só muito mais tarde compreenderia: a apneia da cor ou doença do polvo, a cegueira às cores que antecede a clarividência, o espaço em que a visão se reduz a um cinzento quase branco ou quase preto. Estava ali, tinha feito caminho, e sem contradições, avanços ou recuos. E, apesar disso, ele, o neto do seu avô, tinha conseguido manter-se invisível, para poder garantir o seu compromisso mais íntimo: aprender a ver, para poder voar e, se e quando fosse capaz, preservar a Eternidade Infantil.
Pausadamente, o Presidente leu a extensa lista dos que chegavam a Prestes e dos que eram remetidos a Quase. Era aquele o momento crucial do Direcionário. Fulano de tal: Prestes – merecedor de asas; fulana de tal: Quase – asas cortadas.
«Eu, Quase? Nunca!»
Ninguém o ouviu, mas o avô sorria. O seu neto começava a voar.
Terminado o relambório, a Filarmónica preparava-se para nova peça quando o João Cego entrou na praça trazendo, sobre o ombro esquerdo, o seu pássaro negro - uma coruja de asas cortadas.
«Quero falar!», gritou o velho, tentando aproximar-se da primeira fila.
Num sussurro reprovador, a multidão olhou para trás e ele também. Elias, o velho fantocheiro que fora contratado para animar as crianças no final da festa, disse, vencendo os sussurros, ao mesmo tempo que, ajudado pelo rosnar do seu cão Almôndega, tentava abrir uma clareira para que o João Cego se aproximasse da frente: «Os últimos serão sempre os primeiros! Deixem falar o cego!»
O velho chegou-se á frente onde se consubstanciava o roubo perfeito. Parecia um fantasma. O velho João Cego, de mediana estatura, parecia enorme. Chegava-se à frente, roubava o lugar que era seu mas que, por vontade dos outros, não lhe pertenceria. Era ladrão de si mesmo, pela primeira e última vez!
O garoto sentia um sublime prazer: ganhava vida, cruzava-se, naquele deserto de almas, a personagem que tinha tido vida literária nos relatos do seu pai e nas histórias do seu avô.
Contaram-lhe que o velho João Cego era gago e que cantava que nem um rouxinol, com voz de trovão ou sussurro de nuvem, consoante os textos, e que, depois de cada concerto, filosofava, estendendo o chapéu das moedas.
Desta vez, sem gaguejos nem cantorias, a voz saiu-lhe clara como a água do rio que alimentava a represa. O chapéu usou-o como batuta e leque que encaminhava as suas palavras para o palanque e para a multidão.
Filosofou: «Quero dar-vos os meus parabéns e os meus pêsames. Parabéns aos senhores do Colégio Deformatório Global que, sem pena, não cumprimento nem reverencio, pois, como sabeis, não os consigo ver. Mas consigo imaginar os seus sorrisos, o seu prazer que todos os anos se repete quando, sempre a seu favor, dão asas as uns e aumentam as penas a outros, cortando-lhes as asas. Pêsames aos que aceitam deixar-se iluminar pelo cinzentismo desta cerimónia, recebendo a guia de marcha para o Formigueiro. Hoje, uma vez mais, perpetua-se a Ditadura do Tempo: sem ponteiros de relógio nem contagem de tempo, para os que mandam; com sirenes e controlo, para os que obedecem! Hoje é o dia do Direcionário - o dia em que se celebra o esquecimento. A partir de hoje sereis conduzidos pela ilusão de que voar é a substância da vida, para muito poucos, e andar somente um complemento, para a maioria. Sim, também eu aprendi, na vossa escola, tudo o que havia para aprender. Amanhã começa o novo ciclo da Deformação Funcional. Agradeço aos deuses dos foguetes terem-me cegado quando fiz dez anos. Nesse dia comecei a voar e livrei-me de ser obrigado a aprender as Competências Incompetentes, as Habilidades Inoperacionais e os Saberes Relativos. Passei a ver por dentro e a voar tão longe quanto os horizontes da minha imaginação, que os não tem.
Ide. Deixai que vos conduzam à compreensão de que os diferentes tipos de voo têm sempre riscos associados e que devem ser compensados pela formação compulsiva de diferentes formas de andar, de contar o tempo. De cabeça levantada, os Prestes; de cabeça baixa e de ouvidos atentos, os Quase.
Vá, agitem as bandeiras, animem-se com a Filarmónica! Comece a festa que há de levar-vos ao ciclo final, ao Patamar Inferior, à Especialização.
Os meus parabéns aos que caminham em direção à direção do Colégio Deformatório Global – serão sempre os mesmos. Os meus pêsames para os que aceitam, sem porquês, a Formação para a Escolha Compulsiva – os herdeiros do nada, da disfunção final que é o crescimento onde termina a Eternidade Infantil que a Globalização matou!»