Edição nº 1651 - 12 de agosto de 2020

Antonieta Garcia
EMBURRICA! NUNCA MAIS BRINCO CONTIGO!

Chamar emburrica a alguém era uma ofensa! Mas o que dizer de criaturas que escangalhavam as regras do jogo, enganavam, iludiam e logravam vencer, fosse qual fosse o torneio? Pareciam feitiços as manhas e artimanhas de alguns aspirantes a chico espertos! Sair fraudulentamente vitoriosos dos jogos não tinha segredo para tais quezilentos e matreiros! Ameaçávamos:
- Emburrica! Nunca mais brinco contigo!
Este “nunca mais…” tinha curto prazo de validade. Não ultrapassava uns minutos… Vá lá, umas horitas. Melhor, no máximo dos máximos, durava até ao dia seguinte… Às vezes, trocavam-se os papéis e mais valia perdoarmo-nos em desconto dos pecados que eram tantos e dos quais ninguém estava isento.
No Verão, as brincadeiras viviam-se na rua. As raparigas jogavam ao “mata” com um ringue, dançavam de roda, contavam histórias... Outras atiravam a bola a uma parede, em recreações complicadíssimas. Ora lembrem-se lá! Ainda sabem a lengalenga que acompanhava o desempenho das jogadoras e marcava os cânones a seguir? Superar as dificuldades suscitava uma admiração incondicional. Assim: uma parede alta (1º andar, no mínimo), uma rua sem carros, um grupinho e uma bola de borracha, nem muito pequena nem muito grande, era tudo quanto as mocinhas, in illo tempore, necessitavam para uma tarde espetacular.
- Quem começa a jogar? Quem ganhou ontem?
Bola nas mãos, proclamavam-se em voz alta as indicações contidas na cantilena: 1-“Ao ar!” (a bola voava até à parede) /. 2-“No seu lugar”/. 3- “Sem rir!”/. 4-“Sem falar” /. 5-“Com um pé!”/. 6-“Com o outro”/. 7- “Com uma mão” /. 8 - “Com a outra” /. 9- “Bate palmas” /. 10 -“Rebolar”/. 11- Bate palmas “Atrás e à frente” /. 12 - “Cruzar”- (cruza as mãos sobre o peito) /. 13 -“Bailar”- dá uma volta inteira e agarra a bola.
Treze procedimentos. Treze vezes! Número de azar? De sorte? Tinha dias! O programa completo exigia treino e muita agilidade. A complexidade crescia, quando só podia usar-se a mão esquerda, movimentar-se ao pé coxinho... As peritas ousavam o “bailar”, em-vira-que-vira, desde o começo da toada, cumprindo simultaneamente os restantes preceitos. Tantas as dificuldades, tantas as escapadelas para alcançar o título de triunfadora da tarde! E se havia dias de felicidade pura, noutros, o jogo engalinhava e era uma dor de alma…
Olhos vigilantíssimos acusavam: - Poisaste o pé no chão! Essa não é a mão esquerda! Apanhaste a bola sem dares uma volta… És uma emburrica!
Cada jogadora desmentia os erros cometidos com convicção absoluta. O que restava? Uma arrelia que jurava: “Nunca mais brinco contigo!”.
Às vezes, uma alma conciliadora propunha: “E se jogássemos às cinco pedrinhas?” A raiva e juramentos implodiam e amigas como dantes… Folguedos na rua duravam até à hora de chamada pelos pais.
Perdeu-se o encanto destes jogos? Há pouco tempo li, num romance de Amos Oz, sobre Israel contemporâneo, uma referência às “cinco pedrinhas”. O protagonista da narrativa é um professor universitário, que ensina uma menina, com quem partilha os últimos dias de vida, a jogar. A referência surpreendeu e convocou uma terna memória. Afinal, durante todo o século XX, quantas mocinhas teriam em casa, cinco pedrinhas escolhidas por quem sabia para praticarem em qualquer momento, sempre que apetecesse? Todas, creio. Cabiam no bolso… O jogo chegou-nos pela tradição popular; foi transmitido oralmente e conservado por diversos povos, através dos tempos. A origem? Procurando uma resposta, entre vários textos, deparou-se-me uma imagem de meninas da Grécia antiga brincando com as ditas pedrinhas. Jogo de criação grega?
Acrescente-se que, no Antigo Testamento, as pedras de David contra Golias foram cinco. David vence o gigante apenas com uma, mas recolhera cinco pedrinhas. Amuletos? Jogo de génese sagrada com o objetivo de interferir favoravelmente nas decisões dos deuses? Quem sabe jogar às cinco pedrinhas? E à bola, acompanhada de cantilena?

12/08/2020
 

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