Maria de Lurdes Gouveia Barata
UM SETEMBRO AMEDRONTADO
Setembro é mês que sempre se ligou a regresso: um regresso de férias, ainda com a maresia na pele, ainda com o sabor fresco de campo e água de rios, ainda com verdes nos olhos, ainda com paz de aldeias. Regressa-se ao trabalho, às aulas, generalizou-se a palavra rentrée, força de uso, que se mesclou de alegria de reencontro, mitigando alguma saudade do quotidiano normal. Setembro teve sempre o encanto de laivos de amores de Verão compensados por esse reencontro. Setembro tem certa magia em canções que o mencionam. Parcialmente ainda é tempo de férias, pode ser quente a fazer apelos ao mar, mas diz o ditado: Setembro ou seca fontes ou leva as pontes. Os tapetes de folhas douradas ostentam a beleza da estação que anuncia o Inverno.
Porém, o Setembro deste marcado ano de 2020 aparece amedrontado com a dúvida do vírus que amaldiçoou a vida dos homens. Os canais de televisão noticiam (e tudo nos parece estranho) os cuidados a ter no regresso às aulas, as regras definidas pela DGS, as máscaras, as distâncias, a desinfecção contínua das mãos, a sala de isolamento em cada escola, etc. «Como vou aguentar uma manhã inteira de máscara?!» - já ouvi a várias professoras.
Como tudo muda tão depressa e a mudança sente-se mais quando leva para pior! Tempo perturbador de ameaça com a hipótese de segunda vaga do coronavírus no mundo inteiro – e espreitamos diariamente os números de testa franzida. Alguns tendem a apagar o medo, outros talvez o sintam em demasia. Sabe-se que o medo é contagioso, diz-se que pode ser pior que o vírus, pois impede resposta equilibrada e inteligente a esta crise e pode desencadear uma patologia social, pela perturbação psicológica e pelo impedimento da acção. Todavia, não é patológico em certos comportamentos responsáveis e o ditado lá diz: o medo é que guarda a vinha. Daí que se tornem tão absurdas as Festas Covid… Como disse um virologista ou um epidemiologista (já não lembro) esses jovens das Festas Covid esquecem que não está só em causa o seu contágio, mas o dos familiares ou doutros com quem contactem mais tarde…
A expectativa de abertura das aulas e de possíveis consequências prognosticadas, a expectativa do resultado da Festa do Avante (apesar de sabermos dos cuidados que se tomaram), a expectativa da crise económica, das falências, do desemprego, do aumento da pobreza, a expectativa dos que morrem por falta de cuidados de saúde, eis a expectativa do medo. Acabaram-se os abraços e os beijos, instalou-se a desconfiança do outro, uma desconfiança que traz irritabilidade e medo. Dizia-me há dias uma amiga: «As pessoas andam desconfiadas, têm medo, mudam de passeio para não falar com ninguém, para não passarem junto de outras pessoas… Já senti isso na rua».
Evoco um poema de José Cutileiro: «É a medo que escrevo». A circunstância era a de um tempo de ditadura, à qual convinha o medo para obter silêncio e inacção, para andar tudo direitinho. Apesar de causa diferente, vou reproduzir o excerto de alguns versos, que se enquadram nesta época diferente:
(…)
A medo me renego, me convenço.
A medo amo. A medo me pertenço.
A medo repouso no intervalo
De outros medos. A medo é que resvalo
O corpo escrutador, inquieto, tenso.
(…)
(…) A medo passo, a medo fico.
(…)
Na mesma linha, está «O Poema Pouco Original do Medo» de Alexandre O’Neil, também em contexto de ditadura. É um longo poema de que vou apresentar breve excerto, porque generaliza o efeito pretendido do medo:
(…)
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
(…)
Os poemas anteriores foram criados em contexto de ditadura. Mas o medo mais frequente de hoje também advém de uma ditadura: a do coronavírus…
Perguntamo-nos quanto tempo mais andaremos assim com este medo: medo de uma segunda vaga com o número de infectados a aumentar estupidamente; medo de que os governantes não respondam à altura; medo dos que governam certos países como os Estados Unidos e o Brasil. Estremecemos com o número de mortos, com o número de infectados, com a falta de resposta em países como a Índia, por exemplo. Afinal, todos pertencemos ao grande grupo da humanidade.
Temos medo do racismo e do fundamentalismo religioso. Temos medo da crueldade dos homens, que parecem ter-se desumanizado, arrogando-se o direito de matar (homens ou animais), de torturar, de agredir, desprovidos de sentimentos de compaixão e solidariedade. Temos medo de homens cruéis, e muito perigosos, que inventam, mentindo em nome de interesses pessoais de ganância e poder.
Ainda assim, termino com este pensamento: a esperança está sempre a renascer…