Antonieta Garcia
ROMEU E JULIETA
Na década de 50/60 do século XX, nos pequenos aglomerados urbanos, conhecia-se toda a gente. Algumas pertenciam a um mosaico de figuras que, por um motivo ou por outro, cabiam no rol de excentricidades que as memórias guardaram. Algumas narrativas apimentam a vida, temem-se muitas, elegem-se poucas para o álbum que continuamos a folhear ano após ano, com os amigos do “nosso tempo”.
As personagens repetem-se e não havia localidade que se prezasse que não tivesse um “poeta” que falava e criticava, em verso, os males sociais. Tinha humor e coragem, incomodava, desassossegava as almas e era um deus nos acuda de desejos de vingança! Certo é que, tanto quanto se sabe, ninguém concretizou a raiva. Cobardia? Quero lá saber! Mas que me diverti muito com alguns ditérios verdadeiros ou construídos, não tenho dúvida. Rir ajuda a exorcizar males. As estórias neste domínio, in illo tempore sobravam e soltavam-se, em torno de personagens sobejamente conhecidas.
Na verdade, línguas de cobra venenosas sempre houve e não vem daí mal maior ao mundo; se é verdade, fazem-se ouvidos de mercador; sendo mentira…, se valer a pena, que se defendam!
Ora, nesta cidade, de meninas cuja modernidade tinha a ver com laços farfalhudos na cabeça e meninos de fatinhos de homens a haver, de gente grada e de outras criaturas dignas de dó, nesta cidade havia um par batizado de Romeu e Julieta.
Não se premiaram as histórias portuguesíssimas de amor de D. Pedro e D. Inês, de Teresa e de Simão do Amor de Perdição, para alcunhar o par. Com toques de Academia, foram a Shakespeare e plagiaram despudoradamente o nome da tragédia. Amor maior, o do par beirão?
Quem eram Romeu e Julieta? Não tinham nada a ver com os jovens sempre lindos que filmes e encenações teatrais nos ofereceram, ao longo dos anos. Não se atinava com a idade, mal enfarrapados, cabelo e tudo o mais a clamar por água. Todos os dias calcorreavam o centro da urbe e desapareciam num daqueles conjuntos de casebres que só quem neles habita, conhece. Certo. Nunca foi suficiente a curiosidade para tentar descobrir a casa onde residiam. Às vezes, custa ver, não queremos ver, adiamos e fazemos de conta…
Mas, diria a minha avó: cada um é para o que nasce, e a nossa Julieta, cara rude, ia tecendo a sua prole e muitas palavras amarfanhadas. A profecia era óbvia: não iria passar da cepa torta.
Romeu ia engraxando sapatos, mãos tisnadas de tinta, rosto escuro onde, sem cerimónia, o frio e o sol abriam com grosseria sulcos enegrecidos. Romeu e Julieta andavam sempre juntos, com os filhos pequenos a acompanhar, mal aprendiam a andar. Deslocavam-se em fila indiana. À frente, o “chefe de família” que, na rua, ralhava, maldizia, traçava regras de mau viver. Ela seguia-o, claudicava, tentava acertar o ritmo da passada, respondia a toda a provocação, ou que assim se afigurava. Xaile no verão e no inverno, ponta sobe, ponta desce, a desfazer-se aqui e além, alpergatas… Sempre juntos, sempre arreliados! Os pequenos não deviam entender nada. Eram filhos de andarilhos, aprendiam a andarilhar. Não sei que feitiço os juntou. Encontraram-se, isso é certo, sofreram desaguisados, brigavam de palavras. Desafiavam-se frente a uma plateia que habitualmente nem parava; continuava a andar e sorria perante a discórdia diária. Sem tréguas. E o par durou, durou, durou… A ironia da alcunha tem várias leituras. Porque sempre juntos apelidaram-nos de Romeu e Julieta?
Perguntava Shakespeare: O que há, pois, num nome? Aquilo a que chamamos rosa, mesmo com outro nome, cheiraria igualmente bem.
Lá sabia o dramaturgo, e assim havia de ser. Por isso, o Romeu e a Julieta, da Beira, nunca atinaram com as palavras para mostrar o lado romântico, sublime dos amores que têm história… Ou seria esta uma versão endemoninhada de amor?