José Dias Pires
O DISCURSO IMPROVÁVEL NA CIDADE APETECIDA
Bem para lá do sono, Damião, de olhos fechados, quis penetrar num completo vazio onde não sentisse sequer que existia. Lentamente, em vez de um ponto negro, uma nota musical e um lampejo colorido de luz, começou a expandir-se dentro de si um agradável cansaço que acompanhava lembranças do seu passado e reminiscências da sua esquecida infância: sentia as emoções como se estivesse a reviver aqueles momentos. Sentia-se a voltar a ser criança.
Levantou-se e regressou às ruas do seu velho bairro. Subitamente, pareceu-lhe ter a seu lado o avô e o calor das suas palavras: «Já desististe dos teus fantasmas? Ninguém regressa para desistir. Os meus ausentes, que são os teus fantasmas, estão à tua espera nas casas onde viveram. Tornaram-se em ilhas silenciosas que parecem desabitadas, abandonadas. Ali, em ruínas, estão, por certo, as floreiras e os canteiros invadidos por ervas daninhas. Mas as pessoas não. Estão lá depositadas em pó, velhas, peregrinas, à espera que o destino encontre o dardo capaz de acertar no alvo. “O destino, avô?” “Sim, tu.” “Mas tu estás morto, avô!” “Não fazes ideia…” “Ideia?” “Ideia do que é morrer. Morrer é a principal verdade que o tempo não consegue desmentir. Mas a eternidade sim, é a festa que não se programa porque não queremos fazer a apologia do que representa a nossa mais secreta esperança.” “Não percebo…” “Sei que não percebes a minha poesia, como eu não percebo a tua. Por isso é que eu estou…” “Aqui?” “Não, em ti.”»
Damião conseguia ver, naquele espelho, o avô e o neto em busca da Eternidade Infantil. Havia ali uma transparência, um desejo de amar antecipadamente o preenchimento da ausência prolongada. A sua fome, uma descarada fome onde abundavam planos rocambolescos, entrava na cidade e preparava-se para bater à porta da praça grande onde, na sombra dos silêncios, as palavras sempre sobraram, lambuzadas de bem hajas, de insistências e a fingir-se novas de tão velhas.
Mas que sabia ele da Eternidade Infantil, desse enigma da infância entre o impossível e o verdadeiro?
A memória do paladar tem o sortilégio de nos fazer regressar à infância, aos grandes amores pelas pequenas coisas. Será isso a Eternidade Infantil?
E o avô continuou: «Sabes onde estão agora os nossos sábios? Onde estão os nossos génios, os nossos mestres, os filósofos do nosso tempo, que nada fazem, que nada veem, que nada compreendem para além do palmo que lhes fica à frente dos seus narizes? Ignoram que está a chegar a tempestade. Sabes que tempestade é esta? É a tempestade do Regresso à Eternidade Infantil. É a morte regeneradora da qual nascerá a grande transformação — a liberdade! E nós, o que somos perante tudo isso? Um conjunto de marionetas, que vive, sem saber, uma vida controlada por mentiras sempre aceites como imutáveis verdades? O que está a acontecer à nossa cidade? Para onde caminhamos? O que há por detrás de tudo o que nos ocultam, que afirmam não existir, que garantem ser apenas fruto da imaginação de mentes doentes? Querem que tenhamos as nossas almas frias, mas ainda há calor nos nossos corações. Sim, se as almas frias deixam os nossos corações desasados e a vontade desarmada, desalmada, à mercê dos franco-atiradores, o coração tem olhos que veem muito para além do olhar e descobrem os livros, as palavras, as pessoas cada vez mais solitárias no meio da multidão. Apesar de tudo, a pesar tudo, hão de chegar: os livros, as palavras, as pessoas, como um golpe, profundo, em todas as ausências! Porque no final, seja lá quando, como, e contra quem for, nesse final não estaremos sós! É que esse final somos nós! Olhemos as mãos: que mundo é este no nosso presente sem passado?
Sim, olhemos as mãos: que vida os seus dedos lhe merecem?
Sim, sim, olhemos as mãos: temos tanto caminho ainda por andar! Será que temos medo de deixar na vida uma impressão digital? Não? Então é hora! Viva a Cidade!»
Excerto do romance A CONSPIRAÇÃO DA RÉGIA ESTÂNCIA