Maria de Lurdes Gouveia Barata
ANDAM A ROUBAR-ME FLORES
Gosto de flores, sempre gostei de flores, é-me difícil imaginar alguém que não goste. Maio explode em verdes e variegados coloridos, que fazem com que o olhar beije campos e jardins e os ares se impregnem de deliciosas sensações de cheiros. A Natureza saúda os homens com sedução e deleite. Vibro muito com os tapetes de papoilas e os jardins urbanos pujantes de floração.
Tenho uma longa escadaria na minha casa onde tento reter pedacinhos dessa Natureza. Cogitei no modo como poderia passar entre verdes e flores, para além dos muitos vasos que acompanham a minha subida até à porta de casa. Vieram-me à lembrança os pátios sevilhanos… Tinha de arranjar maneira de ter flores escorrendo pelas paredes e consegui uns suportes que progressivamente me foram permitindo a sensação perante o belo. Quando descobri dois corações de ferro com três pequenos vasos cada, senti o encanto do símbolo florido na parede sobre o segundo patamar da escada. Eram corações. Eram corações com flores. Tudo perfeito para a alegria do olhar e da alma. Talvez um pouco caros em relação aos outros suportes, mas valia a pena… Maior alegria experimentava quando os amigos falavam da beleza que a escada ganhara.
Pois bem! Parece que mesmo as pequeninas coisas quase insignificantes são marcadas pelo destino do efémero momento feliz. Acordei há dias sem os corações! Arrancados da parede, tatuada com a marca da sua existência. Terra no chão e resto duma planta quebrada. Poderão outros pensar que idiotice de queixa perante uma coisa tão parva, o que é isso perante outras violências que todos conhecemos. Todavia, o momento é para pensar nos corações com flores e nos mais de doze vasos com flores que me roubaram. É verdade, andam a roubar-me flores… Vieram dois dias seguidos, nunca pensei que repetissem depois da primeira vez, na segunda só levaram mais três vasos. Já lá vão quinze! Quando me levanto, abro a porta da rua para ver se no terceiro patamar ainda está dependurado na grade o vaso da verbena que me faz lembrar sonetos de Florbela Espanca. É uma verbena rubra, irreverente no vento, teimosa no seu clamor colorido.
Começou a especulação de várias vozes: alguém que quer enfeitar a casa à custa dos outros; alguém que quer vender, porque são muitas…
No meu coração ficou o cantinho vazio dos corações com flores. E o vazio da ausência de todas as flores que desapareceram… e vem-me a revolta, depois da raiva primeira: perdi a liberdade de repor, que seria um meio de ajudar a esquecer. Se repuser os corações, provavelmente voltam a repetir a cobardia… Lembro parte de um poema («Outono») de Cecília Meireles: «De que serviu tecer flores/pelas areias do chão/se havia gente dormindo/sobre o próprio coração?»
Pus-me a pensar: se é para vender, lá vem a ganância do dinheiro fácil à frente de tudo. Se pensarmos bem, há muito que nos roubam flores, pelo menos as que guardamos metaforicamente no coração, quando reflectimos no quotidiano de violências várias, quando reflectimos nos tempos dum espaço mais alargado, que é o da Europa e o do Mundo, quando reflectimos sobre injustiças e desigualdades escandalosas e tragédias humanas como a dos refugiados, a das crianças que morrem de fome, exemplos entre muitos mais.
Se sentires que eles vêm, não te metas, chama a polícia, eles andam armados e podem ferir-te ou matar-te – e a liberdade do homem é cerceada pelo medo, que leva ao silêncio e à permissividade de tudo! Isto não pode ser, mesmo correndo riscos!
A verdade é que nos roubam valores e dignidade, porque não têm valores, nem se respeitam a si próprios, esses Eles num sentido muito mais alargado do que os de ladrões de flores. Mas, a mim, andam a roubar-me flores… em sentido literal. Metaforicamente, andam a roubar-nos flores… a todos nós.