Edição nº 1710 - 6 de outubro de 2021

António Teixeira e Castro
LEMBRANDO EQUADOR, SUL*, DE ANTÓNIO SALVADO, OU ‘O AQUÉM E O ALÉM DA SIMBOLOGIA DA HEROICIDADE’

Os heróis não existem, mas há ocasiões, amiúde, que catapultam o homem para actos de heroicidade! Subjacente a tal momento imponderável está o ser humana na sua mais irreflectida audácia, na sua mais humana imprevisibilidade de corresponder ao inesperado com a força oculta que o enforma e agiganta sumariamente.
O mancebo, saído de uma realidade em que a “granada” dos sentimentos há bem pouco aflorava em cânticos poéticos desenhados pela paz da cidade, ou da vila, onde a luta pela autonomia e trilhar de seu percurso não era abalado senão por florescências de desejos sentimentais, e ainda por ainda vagas luzes de conduta para a concretização da sua afirmação no tecido social, é catapultado a uma realidade absurda, a um domínio do concreto que se tonifica na insegurança que o cerca e não se constitui agente geográfico na sua engrenagem plural de intencionalidade: A Guerra!
E se todo o absurdo das guerras gera uma possibilidade de paz, toda a paz tem motores de afloramentos que entronca em actos de, pese embora a dualidade da palavra, heroicidade. Porque, a guerra é injusta, seja qual for o seu desígnio político ou filosófico, territorial ou hegemónico. Também o derrame de sangue o é, desse, repito, absurdo se exalta, amiúde, a nossa consternação e louvor ao indivíduo que aparentemente a apazigua com a intencionalidade da sobrevivência.
Ora, o poeta António Salvado, num contraponto à granada mutilante, faz detonar a granada da fraternidade colectiva em versos que não qualificam nem “des” a «razão» do absurdo de “guerrear”mas sim esse fulgor tão belo da humanidade que é, pelos seus próprios meios, a ela se escapar. Esses meios foram, para o jovem Salvado, o louvor em poética dissertação a um acto que ele, mesmo em constrangedora desolação, lhe provocou e povoou de líricas intenções. E é assim que, em 1963, numa empedernida agitação de intenções nacionalistas se vê cercado este agente de criação poética.
Não fazendo leituras precipitadas da insanidade que levou jovens que deveriam estar a manusear a “granada” dos sentimentos e dos sentidos harmoniosos para um estadium do sem sentido, escravizando-os a intenções alheias, o poeta António falou do que no mais intrínseco do seu ser se aclarou: a homenagem “heroica” intenção de um seu camarada de armas, dando-lhe o nome geográfico de Equador, Sul. Mas, na realidade, o título imediato poderia ter como semente mil e um adjectivos. Todos eles teriam como resultado a homenagem ao homem que não olhou ao seu sacrifício (desconhecia-o) e que, eventualmente, herói de uma criação poética de genuína fraternidade. Equador, Sul é, porventura, um dos escritos de época e na época produzido com total evidência de uma coragem assinalada em iniludível vontade poética. Ficará, aquém ou além da simbologia da heroicidade, mas não pode passar imune ao verdadeiro sentimento que move o poeta quando confrontado com o que o dilacera, alarma e motiva para a chama da criação.
Volvidos cinquenta e nove anos da sua publicação, importa mais olhar a aventura singular da sua criação, da sua invulgar “coragem” para o dizer no momento da acção, que a intenção de o retractar, ou agrupar, neste ou naquele existente ismo. O de António foi a dedicação a um seu semelhante, sem, estou em crer, menosprezar qualquer outro interveniente, suas configurações ou propósitos.
A palavra “terrorista”, hoje mais elástica que há cinquenta e nove anos atrás, acarreta uma simbologia diferente e deve ser entendida como um produto da época, como um istmo que a cultura dos tempos impunha aos mais esclarecidos, tal como aos menos formados culturalmente, neste país. É um gesto, repito, singular à época, que nos deve levar a uma observância deste manuscrito que encerra em si múltiplas interpretações de cariz social e política.
Repare-se, ao longo deste extenso poema, na exaltação permanente da juventude. Dessa mesma juventude que escorraçada de caminhar no que a sua vitalidade exige: sonhar, amar, despegar-se de rédeas, mergulhar no insólito, se vê a peito com o trágico/indizível de uma guerra que não tem raízes na sua intimidade. O personagem dos versos é em si mesmo um hino à estouvadez da própria juventude, de tal modo que a martiriza num gesto sôfrego de agir sem pensar, de ir para a frente sem hesitar.
Avançar pelo sentimento, sem responsabilidade pelas contendas no presente e as desconhecidas no futuro, foi o que impeliu o jovem poeta para a organização de um louvor sentido, para uma criação poética sem igual, na sua a sua mão narrou a beleza e a agonia em versos de clara inquietação sentimental. E isso era já todo o Poeta António Salvado, essa intenção da poesia que reformula os actos em inesperadas palavras de contentamento e exaltação da vida e da morte.
Equador, Sul é já o prenúncio de um poeta a quem a humanidade se declara com uma exigência do coração: “Tudo era límpido excepto a incerteza / da emboscada”. E foi da limpidez de busca de um acto que se incendiou um poema de exaltação. Pondo este verso a nu, ressalta a incerteza que não se vislumbra, jamais, numa lama jovem. Ela depara-se distante e imprevista, tal como a amada, que dos galanteios do jovem másculo nunca a ele se afigura recusável. Daí a insistência, neste longo poema, na juventude: “A grandeza vivia ignorada nas usa pupilas sérias”.
Há, ao percorrer da narrativa e da poética na história da literatura, todo um manancial de “heróis” convictos e os de mera circunstância, de opções firmes ou os de sinapses desenvolvidos num inconsciente amordaçado. Há razões e desrazões para os actos sociais e políticos, mas para a emoção que se ergue de um deslumbre, ou de uma incredulidade, não haverá muitos acertos a apontar a uma vocação inalienável de eternizar um acto que se ergue como um gesto de amor impensado. E este Poema é isso, e António Salvado até aos dias de hoje movimenta-se do mesmo modo em prol do que o circunda e exalta. As grandes epopeias estão enformadas em heróis que não se reconhecem nos motivos de seus actos. E este poema extenso é fósforo já de tudo em que se contamina o esplendor poético de António Salvado.
*O poema Equador, Sul – na morte e em louvor de José Paula dos Santos foi escrito, em 1963, em Angola e teve duas edições em Lisboa no mesmo ano. Em 1965, o mesmo poema seria incluído no livro Cicatriz. Neste e a seguir ao título, lê-se: “À memória do 2.º sargento José Paula dos Santos que, para salvar os seus soldados, subitamente atacados, se lançou de mergulho sobre uma granada, cobrindo-a com o seu corpo”. Nascido próximo de Castelo Branco, José Paula dos Santos tem monumento evocativo numa praça da cidade.

06/10/2021
 

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