Lopes Marcelo
A CATEDRAL DE UM SÓ HOMEM
Continuando a dar testemunho de exemplos e de obras notáveis e duradouras, num tempo em que quase tudo é descartável, refiro hoje a extraordinária aventura de um homem simples que dedicou a sua vida à construção de uma Catedral.
Justo Gallego Martínez, é um cidadão espanhol muito especial, de mais de noventa anos de idade e que há seis décadas dedica toda a sua vida a construir com as próprias mãos a expressão mística da sua fé: uma Catedral em Majorada del Campo, uma cidade a duas dezenas de quilómetros de Madrid.
A sua história de vida de total entrega voluntária aos valores em que acredita é absolutamente notável. Nasceu em 1925 numa família de agricultores e, ainda jovem, entrou para o Mosteiro da Ordem Trapista de Santa Maria de Huerta. Ao fim de oito anos contraiu a tuberculose e em 1961 teve de deixar o Mosteiro já que a sua doença não era compatível com a reclusão em comunidade de monges. A sua escolha pela Ordem Trapista teve ligação com a actividade produtiva agrícola, já que se trata de uma Congregação Religiosa católica derivada da Ordem de Cister que, a par da vida simples e austera dos seus monges, sempre deu muito valor ao trabalho manual visando assegurar o seu sustento. “Rezar e trabalhar”era divisa de São Bento que inspirou a milenar Ordem de Cister. No nosso país teve grande relevância o Mosteiro de Alcobaça cuja herança na produção agrícola e o engenhoso aproveitamento artesanal dos recursos naturais locais originou a tradição de doces, biscoitos, licores, mel e compotas que, ainda hoje, representam um genuíno património local. Em muitos Mosteiros da Europa para além dos produtos de raiz local, destaca-se a produção artesanal de cerveja que é muito afamada. Também os Mosteiros femininos ainda estão muito activos e é de assinalar o recente projecto de instalação em Portugal de um novo Mosteiro Trapista na Diocese de Bragança – Mirandela, como espaço de silêncio, oração e escola litúrgica.
Mas voltemos ao nosso agricultor – monge que não voltou ao Mosteiro, Justo Gallego Martínez que, após se ter curado da tuberculose, começou a construir a sua Catedral num terreno que herdou de seus pais. Mantendo uma vida austera e de dedicado trabalhador, durante os primeiros anos dedicou-se à recolha de materiais descartados no lixo e em obras demolidas: pneus, tambores de óleo vazios, tubos, ferros, vidros, madeiras e tijolos. A seguir, sozinho, qual formiga dedicada, começou a construção sem dar nas vistas, sem licenças ou projectos de caros gabinetes de arquitectos, apenas ajudado pelo trabalho de seus sobrinhos. Não tendo sido incomodado pelas burocracias do poder, as obras começaram a tomar forma segundo os planos que tinha na sua cabeça. Actuou por um acto de fé e sem enquadramento da própria Igreja. As autoridades não o tomaram a sério e, em face da obra erguida, já não tiveram coragem de a deitar abaixo ou denegrir até porque já tinha apoio popular. Os políticos locais colaram-se ao valor da obra.
A construção foi avançando realizada pelas suas mãos, integrando sobretudo materiais reciclados. Para ter rendimentos vendeu os seus bens patrimoniais e arrendou outros e lá foi acrescentando colunas, um zimbório de quarenta metros de altura, arcos e abóbadas, ultrapassando já a área de construção os mil metros. Ao seu grande e genuíno projecto de vida que foi ficando cada vez mais complexo e imponente, acresce o seu exemplo de vida totalmente dedicada em simplicidade e austeridade, manifestando o desejo de dedicar a sua obra a Nossa Senhora do Pilar. Ganhou notoriedade nacional e impacto nos meios artísticos internacionais. Das visitas de grandes artistas de arte moderna e de arquitectos de renome, ao interesse dos Órgãos de Comunicação Social e à exposição da sua obra no célebre Museu de Arte Moderna - MoMA de Nova York; foram vários os passos e a sucessão de apoios que foram chegando, o que permitiu ao monge-artífice avançar no seu grande projecto que ele considera sempre inacabado.
Contudo, à notoriedade, Justo Gallego, estimado e muito prestigiado ancião, sempre responde com o testemunho de simplicidade da sua vida de monge sem hábito, austero homem de fé, inquebrantável trabalhador numa obra que o transcende mas em que se revê com a autenticidade e a total dedicação dos primeiros anos.
Que extraordinário testemunho de vida, farol de empenho voluntário, num tempo de competição desumana, de usura material e acelerada rasoira dos valores espirituais.
Nota: O conhecimento da obra de Justo Gallego, está á distância de uma simples consulta na Internet.