José Dias Pires
ORA, VENHA O DIABO E ESCOLHA!
O José Jerónimo estava desacordado há muitos meses, ou então fingia-se de morto, à espera.
O ar tépido do quarto eternizava a primavera na devida altura, imitava o outono, parecendo o imerecido descanso, disfarçava o inverno, como se fora o dedo procurando o destino, adiava o verão, num poder invisível.
Queira Deus. Venha o Diabo e escolha. De qual deles o instante perpétuo?
Colocado de forma a poder olhar o teto, o José Jerónimo assim ficou, deitado, desde o primeiro momento em que quase todos os outros iniciaram a longa espera. As sombras transportavam-no a espaços etéreos e eram aterradoras. As cores, as outras cores, ora eram lâminas de água refletindo despedidas deslumbrantes, ora se transformavam em feridas e dor. Os outros ali estavam, continuando a longa espera.
«Parece que dorme.» «Tranquilo.» «É um morto desacordado.» «E ouve?» «Dizem que sim.» «Não acredito.» «Se fosse uma questão de fé!» «E não é?» «Queira Deus!» «Ora, venha o Diabo e escolha.»
As formas sugeriam-lhes amantes. As sombras confundiam-no, apontando um invisível caos. Os planos entrecruzavam-se e sobrepunham-se. Depois já não eram planos, eram duplas dimensões de expressões claras e sombras quase noturnas.
Deitado, ereto como a pedra de onde caíra, saboreava a combinação de gostos e gozos com texturas, antecipava a interação de melodias e ruídos, a mistura do calor com o frio num cenário de teia, num encantamento tecido. Pressentia. Os outros repetiam a espera, numa missão quase missionária, todos os dias, como se houvesse um calendário para José Jerónimo, ou uma aranha.
«Ainda bem que não sente como o tempo passa.» «Mas a barba cresce-lhe.» «Por isso a desfaço todos dias.» «Fica mais limpo.» «Mais bonito.» «Mais dormido.» «Fica, não fica?» «Parece.» «Mas será que vive?» «Não sei.» «Será?» «Quem sabe…» «Deus queira.» «Ora, venha o Diabo e escolha.»
Conhecera em tempos, apenas de vista, um casal unido na felicidade da solidária falta de visão. Aparentemente sem ver, mas capazes de pressentir mais que os sentidos. A dois. Também ele estava duplicado: de um lado José, deitado, ereto como a pedra de onde caíra, esperava que outros, lá fora, se cansassem de esperar. No outro lado, vogando, Jerónimo pressentia o pó como se aquela pedra pudesse desfazer-se. Nestes dias de solidão, e apesar dos que continuavam como aranhas aguardando a mosca, tinha aprendido como foram pequenos os momentos em que esteve verdadeiramente presente nos sítios onde passou. Ficou deitado por devoção tantas vezes. Vezes em que não cedeu ao cansaço, e podia ter cedido, que não agradeceu o que tinha, e podia ter agradecido, e outras tantas em que preferiu deixar-se aborrecer por mandriar uma desculpa.
Agora estava deitado por obrigação ou então vogava quando se deixava distrair, mas isso não era nada ou era pouco, ou não era mais que pressentimentos. Custava-lhe não ter tempo, porque o não sabia, acabar assim, sem uma última conversa, para poder partir sem mágoa. Lembrava-se da última vez que o José e o Jerónimo estiveram juntos, cada um no bolso do outro, mandriando sem se aproveitarem. Depois chegaram os dias cinzentos, as noites luminosas, os sonhos confundidos com as miragens, os pesadelos descortinando tempestades, os segundos, os minutos e as horas de uma ampulheta pingando os últimos grãos de areia. A vida? Deus queira. Ora, venha o Diabo e escolha.
Lá fora os outros atormentavam os gestos que desfaziam nas palavras murmuradas ao silêncio do quarto. Da sua alma?
«Será que dorme?» «E sente?» «Dará por nós?» «E pensa?» «Não, apenas sonha.» «Sonhos cinzentos.» «Talvez.» «Ainda bem.» «????» «Dizem que são menos dolorosos.» «Deus queira.»
«Ora…»
Em dias assim, do venha o Diabo e escolha, daquele aparente choro reprimido, dor tranquila de quem tem pena, apetecia-lhe o lamento, mas estava longe, ali tão longe, à mão de semear de um José que sabia de um Jerónimo maneta. Voador, sim, mas maneta!
Durante o tempo redondo em que os outros, lá fora, poisavam nas cadeiras as memórias que lhes escapavam entre palavras, dava ordem ao Jerónimo que fizesse a ronda. Sabia-o maneta, por isso lhe recomendava que utilizasse as pernas. Invisível, a duplicação de José fazia rodar os alcatruzes da nora e as palavras regressavam molhadas, quase novas de tão antigas. Assim se tornavam em portais da existência humana: do drama, se Deus quisesse, ou da comédia, se o Diabo estivesse para aí virado.
Essa disputa sentia-a por dentro. Por vezes era tão violenta que mais parecia uma turbulência de sentidos de agulha, de dúvidas e inquietações a que não era capaz de reagir para não perder o toque de ternura. Maldito maneta! Maldito Jerónimo que se permitia vogar sobre o cenário e nem ao menos uma página era possível que virasse!
Teimosos, no lado de lá, no único gesto de amor capaz de suportar os obstáculos e os conflitos desses delicados momentos, os outros tentavam, à falta de melhor, reconstruir-lhe os sonhos e os ritmos vitais.
«Está a ficar transparente.» «Parece mais novo.» «Parece uma colher.» «Uma colher?» «Parece. Uma colher de chá em sonhos de doce.» «Olha, tem as bochechas rosadas.» «Vermelhas.» «É da febre.» «Parece um pedaço de vermelho do crepúsculo.» «Parecemos ele a falar.» «Antes fosse.» «Às vezes parece que sorri.» «Será que deseja?» «Parece que espera.» «Só Deus sabe.» «Talvez, se o Diabo o tiver esquecido.»