Antonieta Garcia
SAIU-NOS A FAVA!!!
A balança não mente: o peso aumentou com as doçuras natalícias. Responsabilizem-se os pecadores! Alguns perdem-se por chocolates, a outros são os fios de ovos, as trouxas e afins que dilatam o estomago, o bolo-rei... ah! ao bolo-rei, esse malandrim, culpe-se pela deselegância de pneus corporais que cria tipo mota ou Todo-o-Terreno.
Dia 6 de janeiro é dia de Reis e de bolo-rei. Velhinho de séculos, a identificação do primeiro doceiro apagou-se. Em Portugal, sabe-se que na segunda metade do século XIX, Baltazar Rodrigues Castanheiro Júnior provou, gostou e trouxe a receita de França para a Confeitaria Nacional.
A partir de então, criou-se o hábito de colocar o bolo-rei nas mesas de Natal. Mesmo que com a Revolução francesa, se enxotassem reis e traços monárquicos, os pasteleiros reagiram à censura com engenho e arte: rebatizaram a gulodice com o nome: Bolo sans cullottes, afinal, os principais apoiantes dos jacobinos. Maioritariamente burgueses, usavam como traje típico, calça comprida, casaco curto, o barrete frígio, vermelho, socas...
De resto, em Portugal, a presença do bolo-rei sofreria igualmente com a implantação da I República; os republicanos repudiavam a nomeação e, de novo, há pasteleiros que optam por chamar-lhe: Bolo de Natal, Bolo de Ano Novo, Bolo Nacional, ou até Bolo Presidente ou Bolo Arriaga. Atualmente o bolo-rei gerou um bolo rainha, um escangalhado...
O bolo-rei veio, pois, de Paris, como os meninos. Nas vitrinas natalícias pontifica o doce real que, in illo tempore, oferecia uma libra de ouro, por ano, como brinde, às elites que o podiam adquirir. Mais tarde, a célebre moeda (brinde) será permutada por objetos de cerâmica, de metal ou lata e... à massa acrescentam uma fava.
Na narrativa da guloseima há, assim, o bolo-rei, pai e protagonista; a imaginação, quando é necessário, cumpre a função feminina e multiplica os significados. Durante muitas décadas, havia um bolo-rei (só um!) na mesa de Natal. Aos convivas competia fatiá-lo obedecendo a um ritual:
- Quem começa?
Cada um cortava uma parte, cheiinho de expetativas.
- Este ano, o prémio é meu!
- Isso é o que vamos ver... Para quem é a fava?
Apurada a fatia com brinde que tornara o destinatário vitorioso, aguardava-se a receção da fava que caberia a outro. Cortar o bolo, na verdade, podia significar receber um brinde ou sofrer uma penalização. Misturados na massa, dois ingredientes decidiam quem recebia o prémio... ou a pena. Para o recetor da fatia com a fava, o castigo traduzia-se no pagamento do próximo bolo-rei; às vezes, no do ano seguinte. Neste contexto, o brindado com um quiqueriqui qualquer, apregoava sorte. Queixavam-se outros:
- A mim sai-me sempre a fava, claro....
Durante anos, pactuaram o prémio e a fava. Democratizaram-se, mudaram até que o ritual desapareceu. A fava foi acumulando traços de pouca sorte. Quem a queria! Entretanto, foram descobrindo os muitos malefícios para a saúde provocados quer pela fava, quer pelo brinde. Memórias de dentes que se partiam, engasgamentos, as misturas químicas que garantiam enfermidades a haver... com a fava e o brinde no processo de confeção... A fava era o anjo mau da receita. Comentavam moços exigentes, longe das namoradas, quando viam raparigas vistosas, bonitas:
-Só a mim, sai sempre a fava!
Desventuras atraem desventuras e, neste procedimento, uma lei de 2011 roubou ao bolo algum encanto. Certo é que hoje não se vendem bolos-rei com brinde e fava! É proibido? NIM! O ditame legal impede a venda, “SE tiver mistura direta de brinde...” Em que ficamos?
Saiu a fava ao bolo! Mas o doce não desapareceu. Sobrevive, colorido, sedutor, mesmo sem brinde e sem fava. E não inventem, por favor, em nome da saúde, quaisquer ideias culinárias não identificadas que façam sensaborão um bolo a que se rendem as Boas Festas de Natal.