Maria de Lurdes Gouveia Barata
INDIGNAÇÕES
Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação
Estamos perante a primeira estância do poema «Data» de Sophia de Mello Breyner Andresen (Livro Sexto), de que me lembrei a propósito do título desta crónica: retenho o tempo que vivemos como um tempo de negação. Mas é também de indignação que nos leva à revolta e ao protesto. Dizia Santo Agostinho que «a esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem; a indignação ensina-nos a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las». A capacidade de indignação tira-nos do campo da indiferença, contribuindo para que sejamos mais solidários.
Em Fevereiro todos ficámos indignados com a notícia divulgada sobre o DESPERDÍCIO DE ÁGUA EM PAÇOS DE FERREIRA. Os comerciantes e moradores desse concelho devem ter um consumo mínimo de água de 1000 litros por mês ou, caso contrário, pagarão mais, por aplicação da taxa máxima de saneamento, que se traduz num acréscimo de 17,47 Euros. A distribuição de água está entregue a privados desde acordo de 2004, com um contrato de concessão que obriga a esse consumo mínimo. Ficámos estupefactos perante as imagens televisivas das torneiras abertas sem finalidade, para que se chegue ao consumo dos 1000 litros, poupando assim esses 17,45 €! «No gastar água é que está o ganho» dizia alguém. Estamos em tempo de seca, em tempo de alterações climáticas com prognóstico de diminuição temível de água potável e isto acontece em Paços de Ferreira. Não cabe no nosso entendimento. Só a indignação que leva ao protesto.
Um estudo publicado pela universidade britânica de Yorque faz um alerta: A POLUIÇÃO DOS RIOS CAUSADA POR FÁRMACOS. A descarga de fármacos nos rios está a causar uma situação crítica de poluição aquática à escala global, acarretando riscos tanto para as espécies aquáticas como para humanos. Há deficiência de tratamento de águas, a eficácia de antibióticos fica em causa. O investigador principal, John Wilkinson, observou à BBC que se ficou a saber que “nem mesmo as mais modernas e eficientes estações de tratamento de águas residuais são capazes de degradar completamente estes compostos antes de irem parar a rios ou lagos”. As substâncias dos medicamentos para a epilepsia e a diabetes foram as mais encontradas nas análises feitas. Substâncias como o paracetamol, a cafeína e a nicotina são também largamente detectadas. Foram recolhidas amostras em mais de mil locais, entre Londres, Amazónia, India e Nova Iorque, que mostram vários tipos de antibióticos e químicos que afectam a vida selvagem. Acrescento o que li numa notícia da Internet, que toca o humor negro no título: «Os peixes no Algarve “tomam” Prozac e Brufen e nadam entre microplásticos». Foi descoberta feita pelo Centro de Investigação de Ciências do Mar (CIMA). Tudo é inquietante e absurdamente esmagador de esperança no futuro.
Pode-se dizer que indignação ao minuto é a nossa reacção à INVASÃO DA UCRÂNIA PERPETRADA POR PUTIN. Sim, por PUTIN E A SUA ADMINISTRAÇÃO, que o povo russo não tem culpa e sofre há anos sob o domínio do ditador. Este megalómano só se ouve a si próprio, sendo desumano quanto basta. Cínico, na operação militar especial. Porém, a guerra a que assistimos a qualquer hora, mesmo de longe, a destruição selvagem da Ucrânia, a crise humanitária, eis o que provoca a grande indignação. E as palavras faltam.
Circula na Internet uma mensagem denominada Flores para a Ucrânia que traz consigo um poema de António Gedeão - «Poema da Terra Adubada» (Linhas de Força, 1967). Sete estâncias o constituem, escolhendo eu a primeira e a última:
Por detrás das árvores não se escondem faunos, não.
Por detrás das árvores escondem-se soldados com granadas de mão.
(…)
Depois os lavradores
rasgarão a terra com a lâmina aguda dos arados,
e a terra dará vinho e pão e flores
adubada com os corpos dos soldados.
A indignação está neste tempo de ameaça, último verso do poema de Sophia citado no início, tempo de ameaça dos homens e da Natureza agredida pelos homens. Mas «em todas as lágrimas há uma esperança» disse Simone de Beauvoir.