Elsa Ligeiro
O INTERIOR DO MEU PAÍS
Decidi, em 2016, abandonar Coimbra onde vivia e instalar-me profissionalmente em Alcains, concelho de Castelo Branco, com o desejo de contribuir para o desenvolvimento do Interior.
Os meus vinte cinco anos de Coimbra foram um curso de conhecimento profundo sobre a Poesia (e a falta dela); sobre as relações humanas e as dificuldades de criar comunidade para lá do interesse pessoal.
Talvez a nossa condição humana seja a de nos agruparmos apenas (e só) para defendermos o nosso interesse particular. Não sei. Mas, se assim for, ao menos que o façamos com a humanidade que os livros registam com firmeza.
Gostava de vos falar de/e com Poesia, a arte humana por excelência.
Vivo, há algumas décadas, no equívoco de ser olhada pelos meus pares, e também pelos outros, como a rapariga das atitudes poéticas.
É verdade, mas não na dimensão lírica com que o afirmam.
A Poesia, a mais humana das artes, foi, confesso, a força que mais me motivou a regressar a Alcains.
O desejo de justiça, e o dever de dar valor ao território da juventude; mas também o regresso a uma identidade que nunca perdi; e a uma infância mitificada, especialmente quando se estagia já na difícil arte da perda dos avós, dos pais, e de alguns amigos.
Viver de forma definitiva, desde 2016, na Beira Baixa, deu-me uma perspetiva do Interior do meu País que os estudos académicos e as reportagens jornalísticas nunca conseguiram; porque não são reais.
A mobilidade, a falta de uma opinião pública qualificada que permite ainda o exercício do poder de forma imperial e autocrática; não tem representação nas estatísticas ou mestrados por muito sérios que se apresentem os estudos.
A vida não se estuda nem se explica: enfrenta-se com o corpo e a alma.
O envelhecimento e a decadência das aldeias do interior do meu país não podem servir apenas para reportagens televisivas; para a sua utilização em narrativas líricas com banda sonora adequada; como se tudo não passasse de um requiem artístico sem consequências.
O Interior não está abandonado porque nunca esteve no centro de nada. Sempre foi usado para narrativas sobre o mundo rural e o nosso “bom povo” português.
Sejamos frontais: a aldeia mais “portuguesa” de Portugal sempre esteve no Interior. A pobreza “honesta” sempre teve o Interior como exemplo.
Torga tem dos serranos uma imagem de ancestrais pastores; classifica-nos de teimosos “como um Sísifo voluntário, nenhuma mudez original é capaz de o impedir de tornar audível o que esta afirmação promete de tenacidade, concentração, serenidade e consciência de si”.
E mais à frente atira: “Sem o dizer, sem o afirmar, o beirão sente-se dono de Portugal. Cingido até fisicamente às estremas da sua courela, herda, contudo, o sentido absorvente e centrípeto da mãe”; e o escritor ainda sem acreditar na possibilidade da eleição democrática futura de um Guterres ou de um Sócrates; famosos beirões com mando no Terreiro do Paço, escreve no seu livro Portugal: “Não há casal, dos inúmeros que se espalham pela serra fora como pequenos rebanhos de ovelhas, onde não tenha nascido um desses homens sem brilho, apagados e humildes, que começam a tocar pífaro sobre uma lapa, e que às duas por três estão no Terreiro do Paço de aguilhada na mão”.
O Torga é um autor muito citado no Interior do país; mas pouco lido. Por aqui também não se lê Vergílio Ferreira, Eduardo Lourenço, Eugénio de Andrade ou José Cardoso Pires; nem sequer os convocam para fazer parte da extraordinária Seleção Literária da Beira Interior (o que, na minha opinião, é um verdadeiro escândalo).
António Ramalho Eanes, Pedro Álvares Cabral, António de Andrade, Amato Lusitano, Pedro da Fonseca, Manuel Antunes ou Pêro da Covilhã nasceram aqui e daqui partiram para nunca mais regressar (só as mulheres ficaram, provavelmente à espera do regresso dos seus filhos).
Não há mal nenhum em partir e correr mundo; o problema está na atitude com que olhamos um território que ora é o pior do mundo, carregado de atraso e pobreza ancestral; ou, logo a seguir, a mais bela paisagem do universo, cheia de manjares únicos no mundo; numa bipolaridade perigosa e de nefastas consequências.
Com esta postura não conseguiremos avançar. Não com esta visão histriónica e bipolar.
Nem tão pouco com a falta de exigência e vigilância democrática com os autarcas que elegemos para defender o nosso território comum; e que após as eleições se julgam donos disto tudo; subvertendo completamente a lógica da democracia.
Na próxima crónica apresentarei uma das muitas estratégias para desenvolver a Beira Baixa; pensada ao longo dos anos, e com conhecimento real a partir de 2016, ano em que decidi deslocar a minha empresa de Coimbra para Alcains.
A próxima crónica será em 2023, um ano ainda em guerra na Europa, o que nos traz problemas acrescidos; mas, todos o sabemos: são os tempos difíceis que trazem consigo uma necessidade imperiosa de mudança.
E, como escreveu Camões, é necessário que o futuro ganhe (urgentemente) novas qualidades.